segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Até Breve

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Estamos na véspera de mais uma data cheia de memórias e significado para todos os
bragançanos que sempre viveram numa grande cumplicidade com os seus estudantes e a velha Academia: o 1º de Dezembro. Nesta noite, para além de se cumprir a tradição da visita fortuita a algum galinheiro descuidado, os estudantes levavam à cena, no velho Teatro Camões, grandiosas representações cénicas, muitas vezes patrióticas. O professor responsável pelos ensaios, durante o longo 1º período, foi durante muitos anos o Dr. Fernando Subtil. Em sua memória e preito de homenagem publico aqui o texto que escrevi quando Fernando Subtil deixou de estar entre nós e se fez saudade.
As pessoas cumprem o seu tempo cumprindo-se. E foi isso o que aconteceu com o Dr. Fernando Subtil cumpriu-se, no seu desejo de intervir na sociedade do seu tempo, de se rever na mudança do quotidiano da sua cidade que tanto amou, com um amor, paradoxalmente, de encanto e desencanto, pelo facto do devir histórico não se identificar com o seu imaginário de criador de factos, de cidades ideais, de metas próximas ou longínquas.
Fernando Subtil, dizia-me muitas vezes: - O nome nos une, bem como o gosto pela escrita.
E acrescentava: - Vós, mais dois, ou três e eu, fazíamos o melhor jornal da região.
Este Jornal nunca aconteceu e em escritos vários e jornais diversos gastámo-nos em polémicas infindas, concordamos, discordamos, fizemos política na divergência, vivemos lado a lado numa apreciação discreta e tantas vezes manifestada numa cumplicidade de quem vive perto da palavra escrita.
- Li o vosso artigo e como eu gosto da forma como escreveis, mas tenho que me meter convosco porque não concordo com o conteúdo.
Avisava o Dr. Subtil deixando muitas vezes uma nota de afecto perante o meu desassossego e descontentamento: - Vós bem sabeis quanto vos quero...
Quantas vezes me citou, quantas vezes lhe respondi, quantas vezes me convidou para o tal Jornal, único, interventivo, literário, para o tal Jornal que ficou a ser o melhor do mundo para toda a eternidade porque só existiu na grandeza dos sonhos de Fernando Subtil.
Contudo, este é o texto que não queria escrever, porque quando morre um homem que passou pela vida com a exuberância e a força de Fernando Subtil, um homem que tanto escreveu e tanto disse, um homem que fez a paz e fez a guerra, um homem que marcou a história de Bragança, este homem estará sempre aí perto do nosso desconforto, das nossas omissões, das nossas incapacidades para a denúncia.
Uma das últimas vezes que jantei com o Dr. Subtil foi pelo Inverno, esperou-me pacientemente bebericando o seu copinho, junto à lareira do restaurante Turismo. Mal entrei fulminou-me logo com o seu humor matreiro: - Convidei-vos para aqui para não vos comprometer...
Desculpei-me e achei que aquele jantar iria ser uma monotonia à volta de dois homens que pouco falaram durante a vida, embora fossem tão próximos no mundo estranho da escrita.
Bem pelo contrário, foi um jantar ameno e o Dr. Subtil tornou-se, como por magia, num Fernando afável que brincou o tempo todo com os seus sonhos, com os seus desejos, com a sua doença, dizendo-me que ainda queria escrever um livro sobre o cancro, não o cancro que o havia de matar, mas o cancro da sociedade em que se vive.
Já no final e como quem revela um segredo, disse em tom quase teatral, bem a seu jeito:
- Pedi-vos para jantardes comigo para vos dizer que vou fundar um Jornal, que tem o nome dum rio e quero que sejais meu sócio. O título só o direi depois...
Esse Jornal, o melhor para o Dr. Subtil, só se poderia chamar, disse-me mais tarde: SABOR.
À meia-noite despedimo-nos, num abraço cheio de afecto, como dois velhos sócios e fez questão de pagar o jantar para me obrigar a termos que jantar de novo, retribuir o pagamento e confirmar se aceitava a sociedade.
Jantámos de novo, no mesmo sítio, um jantar já mais doloroso, porque com pena e imensa tristeza eu tive que dizer que por motivos profissionais, tão cedo, não queria entrar em nenhum projecto jornalístico.
Paguei o jantar, despedimo-nos com o mesmo abraço e eu fiquei com a impressão que o Dr. Subtil estava muito triste, pois, o sonho do SABOR diluía-se, tragicamente, na frieza da sombria noite transmontana.
Parece-me que nunca mais falei com o Dr. Subtil, a nossa despedida entristece-me, mas por outro lado deixa-me cheio de orgulho, porque nós dois, tão cúmplices durante a vida, despedimo-nos à beira dum sonho.
Em qualquer parte onde estiver o Dr. Subtil ele estará sentado, escrevendo para toda a eternidade à beira de muitos anjos escritores de sonhos e de projectos, sorrindo com aquele seu sorriso ímpar, cheio de ironia e complacência e um frio enorme perpassa por aqui, porque não sei o que F. Subtil diria, em nota de rodapé, deste meu escrito que não desejo que seja de circunstância.
Até breve Dr. Fernando Subtil é assim que se diz, quando todos sabemos que estamos de partida a caminho dum lugar, algures, onde nos espera o nosso SABOR, escrito em letras radiosas com a tinta mágica da eternidade.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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