domingo, 11 de agosto de 2019

Uma Certa Lisboa

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Como bom transmontano demandamos a Lisboa nesta fugaz ritualidade de cumprir as tarefas de reunião com o carácter de urgência e sempre com uma certa ansiedade que o regresso ao trabalho do quotidiano já não demora.
Em Lisboa vive-se muito bem, em apartamentos recuperados em velhos edifícios ainda com memórias pombalinas.
Em Lisboa vive-se muito mal em becos sórdidos, ou no aconchego de pátios escuros adornados com jornais que meigamente recebem os sem abrigo.
Das janelas amplas, cheias de Lisboa, lá está a cidade desenhada a esquadro, régua e compasso na previsibilidade do homem que em 1755 mandou enterrar os mortos e cuidar dos vivos, depois do medonho terramoto que reduziu a escombros a velha Lisboa até ao Campo de Ourique.
A Baixa lisboeta é um mundo cosmopolita, a grande montra onde deslizam as múltiplas etnias. Os negros reúnem-se nos Restauradores, acampam, telefonam, falam num português negro, na grande alteridade das culturas sem fronteiras.
As esplanadas animam-se, come-se marisco com sabor a descobrimentos, a mar e ao anonimato de gentes de todo o mundo que passam como se não passassem e vão não se sabe para onde.
Os mendigos descobriram novas estratégias, na antiquíssima arte de pedir e aplicam técnicas de marketing que apostam na emoção e na novidade para atingir difíceis objectivos, numa concorrência desmesurada nas ruas de Lisboa. Assim, uma mulher andrajosa estendia a mão enquanto uma criança magríssima dormia no desconforto do colo. Os transeuntes olhavam com piedosa censura e recusavam a esmola que tardava para a mulher habituada à indiferença da humanidade. Mais além, um rapaz com longos cabelos e um ar de abandono de quem possuiu o tempo todo do mundo, amestrou um pequeno cão que levantava na pata uma lata, onde os transeuntes embevecidos iam depositando moedas, para gáudio e conforto do rapaz que descobriu que um cão obediente vale mais do que uma criança faminta que dorme no colo duma mãe velha e doente.
Mas Lisboa é assim, grande em tudo, no luxo, na riqueza, no Poder, na beleza, mas também no bizarro, no insólito e na pobreza.
No Hospital de São José passa Lisboa doente, numa infinidade de doenças. Os ciganos acampam no parque hospitalar à espera de um familiar operado há vários dias. Os mendigos querem ser internados na esperança de sopa quente e cama lavada. O “Troca a nota” é o homem Lisboeta típico que vive de expedientes, prometendo apoio às vizinhas que esperam na Urgência. Uma mulher suada, de telemóvel em riste, telefona à filha: - O “Troca a nota” diz que fica comigo em casa se o teu pai ficar internado. Tu que achas?
E ria, num rir de delírio, enquanto o seu homem se debatia nos cuidados intensivos entre a vida e a morte.
Lisboa tem muita gente. Muita gente culta, muita gente atenta ao País e ao Mundo e muita gente que se perdeu na vida e nos afectos e sobrevive nos subúrbios da grande cidade.
Lisboa acentua as contradições do povoamento, pois, enquanto a Capital tem gente a mais, o Interior morre paulatinamente na grande diáspora e envelhecimento das suas gentes.
Mas hoje, o povoamento não se faz por decreto, do tipo lei das Sesmarias, promulgado em Portugal durante o reinado de D. Fernando I com a finalidade de fixar as populações rurais nas suas regiões de origem.
Hoje, o povoamento faz-se pelo aproveitamento e descriminação positiva das Regiões mais desfavorecidas, como recentemente fez o Governo, apoiando as empresas que se fixem no Interior. Hoje, o povoamento faz-se pelo apoio e incentivo à imigração selectiva e de qualidade que seja uma mais valia para a Região e para o País. 
O eterno retorno da filosofia Grega leva-nos aos antiquíssimos Castros que morreram por falta de habitantes, dizimados por conflitos étnicos e pestes que espalharam a morte e o terror. Das ruínas dos Castros nasceram as aldeias…Trás-os-Montes povoou-se e despovoou-se vezes sem fim…resistindo sempre à fome…à guerra e à peste com auxílio dos Santos e da bravura dos homens e mulheres deste reino maravilhoso.
Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez...falta cumprir-se Portugal…diz-nos Pessoa.
Portugal está a cumprir-se na abertura à Europa e ao Mundo…Trás-os-Montes há-de cumprir-se na tranquilidade e na valentia das suas gentes que sabem que o futuro e já hoje e a Região se vai cumprir no sucesso e no renascer para os novos tempos europeus.


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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