quinta-feira, 16 de abril de 2015

O "VERBO"

À maioria dos leitores, o nome de Cipriano Augusto Lopes nada dirá. Ao invés, se lhes disser que o Sr. Cipriano é o famoso Verbo, o caso muda de figura.
Salvo as devidas diferenças, estamos ante a repetição do sucedido a Adolfo Rocha. O pseudónimo Miguel Torga apagou o nome verdadeiro.
Franzino, voz arrastada de contra-tenor, cigarro preso aos dedos, resposta pronta, reinadia, bem-humorada, o Verbo adorava falar, trocar opiniões, discorrer acerca de tudo e de todos. Ele próprio fazia a sua biografia. Não se esquecia de mencionar o período em que foi escanhoador-mor do Sr. D. Abílio; também não se esquecia de mencionar os amigos e conhecidos. 
Dava particular ênfase ao facto de o Professor Paulo Quintela nunca se esquecer de o visitar nas suas vindas a Bragança.
Servia secos e molhados. Pela noite fora a rapaziada conseguia levá-lo a conceber uns extravagantes ovos estrelados, saborosos, propiciadores de nódoas no casaco, de comissuras amarelas nos lábios enquanto o tinto fagueiro não as escurecia. Adorava sonhar em voz alta. Esse hábito trouxe-lhe aborrecimentos, pois os sequazes salazaristas não apreciavam o conteúdo dos sonhos deste pícaro citadino.
Os horários nocturnos no seu estabelecimento raramente eram cumpridos. Fechava a porta, iniciavam-se conversas e discussões sem fim, muitas vezes sem nexo. O ruído cacofónico levava o polícia de giro a intervir. 
Nessa altura, o nosso homem, ora triunfava mediante retórica apropriada, ora apanhava uma multa. Na maioria das vezes ganhava o pleito no momento, de outras vezes conseguia a absolvição na barra do tribunal.
Meia-cidade conta à outra meia, episódios protagonizados pelo Sr. Cipriano. Permito-me trazer à colação um menos conhecido. Tendo sido actor principal o poeta António Barahona da Fonseca, na actualidade a viver debaixo de nome árabe, devido a ter abraçado o islamismo. O poeta áulico do nocturno surreal-sobre-surrealista café Gelo, chegou a Bragança no mês de Dezembro de 1961. 
Por indicação de outro poeta, Herberto Helder, tinha sido nomeado responsável pela recém-inaugurada biblioteca itinerante. Visitava o “Verbo” frequentemente. No dia em que recebeu o primeiro ordenado na sua vida entendeu prolongar a libação pela noite fora. 
Madrugada adiantada, o autor de “Elegia Lenta” pediu mais um copo de três. Bebido o vinho, arregaçava a manga da camisa surpreendendo os circunstantes, ao dizer: “Atenção, o cutelo da minha mão vai partir o copo ao meio”. Aviso feito, acto contínuo o copo de vidro grosso estava dividido em duas partes. Aplausos. Entusiasmado, pede novo copo. Circunspecto, o “Verbo” observa atentamente o golpe. O copo não se partiu a direito, o pulso surrealista exibia um profundo golpe. A sangrar fortemente, é conduzido ao hospital pelo fiel e dedicado António Barril. Fleumático, o Sr. Cipriano alude à sorte e o azar andarem sempre juntos.

in: Figuras notáveis e notórias bragançanas
Textos: Armando Fernandes
Aguarelas: Manuel Ferreira

1 comentário:

  1. É obrigatório que eu saúde o criador deste blogue, pelas notícias e lembranças que nós trás!. Lembro-me perfeitamente de "O Verbo"!!.. creio que foi concorrente ao célebre "Jogo do Galo", na TV!!.. ainda bebi uns poucos "copos de 3, com morangos", no "Verbo"!!.. Dei explicações a um dos filhos!.. talvez ele me tenha dito o verdadeiro nome do Pai!.. Deixo aqui um abraço emocionado e respeitoso!.. JoséFins

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