domingo, 25 de dezembro de 2011

O Natal


EXCERTOS
Ceva morta, Natal à porta.

O Natal acontecia no período em que o gelo, a neve e a chuva se instalavam para fazer jus ao ditado dos nove meses de Inverno e três de inferno.
Apesar disso, era uma festa quente e excitante e era muito mais que uma festa de família: era uma verdadeira festa da comunidade.
Eu explico.
A excitação começava com a compra, na feira de Vilarandelo, a vinte e três, das pinhas de pinheiro manso - coisa que não havia no termo da aldeia - a sua abertura ao lume, a extracção dos pinhões e a distribuição destes, em partes iguais, pela canalha da casa. O cheiro da resina, o estalar das brácteas da pinha por efeito do calor e a expectativa de quantos pares de pinhões ela renderia eram um encantamento. Não sei por que estranhas influências os pinhões tinham tanta importância no Natal da criançada. O certo é que, não havendo a tradição da distribuição de prendas, as pinhas funcionavam como o melhor dos presentes.
A partir da ceia, toda a gente jogava aos pinhões:
Ao par e pernão que consistia em adivinhar se o número de pinhões contidos numa mão fechada era par ou ímpar, pagando o que perdesse esse número. Ao rapa, fazendo-o rodar sobre a mesa até se imobilizar mostrando na face superior a sorte de quem o lançou: ou R que significava levantar todos os pinhões da banca, ou T que permitia que o lançador retirasse o número previamente combinado, ou D que deixava tudo na mesma, ou P obrigando o jogador a pôr na mesa o número de pinhões fixado;
À abridaima que consistia em adivinhar quantos pares estavam numa mão fechada. Era um jogo a dois. O jogador que tinha os pinhões na mão fechada dizia"abridaima ! ", ao que o segundo respondia "abre a mão e dai-ma". "Sobre quantos pares ?", questionava o primeiro e abria e fechava a mão. "Sobre tantos pares" arrematava o segundo. Se acertasse, ganhava os pinhões que estavam na mão. Caso contrário, era obrigado a repor a diferença.
Este tinha também o nome de conquerroncom. O jogador que  tinha os pinhões na mão fechada, abria-a e perguntava: Conquerroncom, conquerronquelho, quantos porquinhos estão no cortelho? O outro jogador fazia o palpite e tudo se passava como no anterior.
Excitante também era, ao cair da noite de consoada, ouvir o carro de bois a matraquear as pedras da rua e a algazarra da rapaziada transportando a choça para a fogueira que devia arder desde a noite de consoada à de Reis. Era tradição os rapazes solteiros, com os que foram a sortes à cabeça, no maior dos sigilos, fisgarem a melhor choça, de castanho, de negrilho ou de freixo, roubarem um carro de bois e transportarem-na, sem o dono se aperceber, até ao Largo do Peto. Não podiam pedir nem o carro, nem a choça, nem utilizar animais para o seu transporte. E comprometiam-se a manter a fogueira acesa até à noite de Reis, roubando para o efeito a lenha miúda que fosse precisa, pela calada da noite, dos cabanais da vizinhança. Usava-se lenha seca de urze e de giesta para acender a fogueira e o monte de carvalhos, freixos, giesta negral e castanho garantiam o braseiro noites fora. O termo roubar, aqui, é uma maneira de dizer, porque todos os vizinhos deixavam a lenha a jeito para facilitar o rapinanço.
Quente era o aroma dos fritos - o bacalhau passado por ovo e salsa, o polvo preparado de igual modo depois de cozido, as filhós de farinha centeia, as fatias paridas - e o cheiro característico da couve de penca e das rabas cozidas para acompanhar o bacalhau da consoada e, claro, a aletria para os mais gulosos.
Quente era o ambiente da lareira onde a família se reunia e ceava e os avós e os pais se prestavam a perder nos jogos dos pinhões, para felicidade de filhos e netos.
Ceava-se cedo porque a noite era longa - a maior do ano com algum erro de cálculo - e havia que usufruí-la em casa e no Largo do Peto, em redor da fogueira.
E quente, da amiga confraternização dos vizinhos, era o ambiente em roda da choça, onde velhos e novos folgavam, alheados da vida madrasta, cantavam para não carpir mágoas e riam como se escarnecessem dos reveses. Bebia-se aguardente para aquecer por dentro e ia-se voltando o corpo, ora de frente ora de costas para a fogueira, para não arrefecer por fora.
E isto até a meia-noite anunciar o dia de Natal, a menos que fosse ano de ser representado, em Tinhela, o Ramo - que assim se chamava o auto do nascimento - onde se ia como em peregrinação, Monte da Senhora abaixo, Monte da Senhora acima.


Do Natal aos Reis, a choça ardia todas as noites e os mais persistentes faziam romaria à sua volta.


António Mosca
in Quem Me Dera Naqueles Montes...

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