sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Um inverno - a matança do porco

Levantámo-nos cedíssimo, noite escura. As estrelas brilhavam como diamantes lapidados. O frenesim respirava-se... Era o dia da matança. 
O meu avô Zéca já lá estava com o meus tios Pedro e Firmino e o tio João Caetano. O tio Zé Tarela juntou-se ao grupo com uns bons dias sorridentes. O Graciano, o Quintino e o "Ponês" desciam a rua a assobiar, iluminados pelo luar. A eles juntou-se o Elias grande. Da Portela surgiram o tio Miguel e o tio Américo, primo da minha mãe. 
Na cozinha, afadigavam-se as mulheres, à volta do lume imenso, onde os potes da matança já fervilhavam. Ultimava-se o mata-bicho. A mesa estava posta. Não faltavam os figos secos e as nozes. O pão, cozido na véspera, que cheirava maravilhosamente. A tia Engrácia fritava o bacalhau e o polvo. O queijo de cabra, um naco de presunto, um salpicão da última matança convidavam à degustação. As azeitonas do ano passado, curadas pela minha avó estavam, milagrosamente, conservadas. E, claro, a carne gorda de que o meu avô muito gostava. Para beber, o famoso vinho do Videira, a aguardente e o café feito ao lume, no pote.
Os homens entraram e, depois dos bons dias, sentaram-se para comer. Um ou outro chegou-se ao lume que a manhã estava gélida. Comeram e beberam à vontade e em alegre cavaqueira. De repente, fez-se silêncio, estranho silêncio.
Encaminharam-se todos, juntamente com o meu avô Videira, para o cabanal onde já estava o banco, feito por ele, e demais apetrechos necessários para a função: a corda, a sovela, um pau, perfeitamente polido e limpo para servir de apoio ao pendurar o porco na escada de madeira que, também, ali se encontrava, um recipiente de barro com sal e vinagre para aparar o sangue, os manhuços de palha para o chamuscar, os cântaros com água para o lavar, as pedras de granito para o limpar e, obviamente, a faca, especialíssima, que apenas era utilizada para esse fim. O matador era o meu avô.
No lar e na zona do louceiro não faltava que fazer mas, isso, era trabalho das mulheres. Não se sentaram para comer, iam comendo. A minha avó, com um pedaço de pão e polvo frito na mão, observava com os seus brilhantes olhos azuis. 
"Avó, tome." Estendi-lhe uma caneca com café. Acordou do seu devaneio e sorriu-me. Bebeu um pequeno gole e mordiscou o pão. A minha outra avó entrou nesse momento, ligeira e leve.
"Bom dia tia Maria! Estava a ver que não vinha." "Eu não queria vir mas, se não viesse, a minha neta ficava zangada..." "Entre avó, entre. Aqueça-se que está frio. Já lhe dou de comer." Dei-lhe o mesmo que à avó Elvira. Bebeu um bom gole de café quentinho. Sentou-se.
Por breves momentos, olhei para elas e o meu olhar marejou-se. Ali estavam duas das mulheres responsáveis pela minha existência. Velhinhas as duas, sofridas também. As suas vidas não haviam sido fáceis. Com percursos diferentes, destacavam-se pelo carácter, pelos valores que defendiam e aplicavam no seu dia a dia. Uma e outra eram exemplos na pequena comunidade a que pertenciam.
"Ó rapariga, sai-me da frente que não me deixas trabalhar! Já comeste? Come que preciso da tua ajuda."
Fui buscar uma caneca e enchi-a de café. Bebi-o com enorme prazer. Pedi que me dissessem o que havia de fazer.
Na rua, os homens lutavam contra a resistência dos porcos que não queriam abandonar a loja. Os pobres animais grunhiam desconsoladamente como se adivinhassem.
A tia Glória, mulher do meu tio Firmino, deixou escapar um breve suspiro. "Coitadinhos!"
"Helena, vais lá tu para aparar o sangue." Mandou a tia Engrácia. Helena, enquanto comia, acenou com a cabeça, soltando um vernáculo, "Pois vou, c...".
Eu, que nunca tinha assistido a uma matança, perguntei se podia ir ver.  "Estamos aqui muitas mulheres, deixa ir a garota. Não precisamos dela." "É, deixe-a ir Isaurinha. Ela ainda tem muito tempo para aprender." "Vai. Não sei se vais gostar mas vai...", disse-me a minha tia.   
Para mim, desenrolava-se um mundo novo. Aquele frenesim, aquele ambiente de festa e, ao mesmo tempo, algum constrangimento, alguma tristeza, faziam-me confusão. 
Fui para a rua e recebi no rosto o ar ar frio da manhã. Não sei porquê, soube-me bem.


Por: Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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