quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Verão


"Anda! Levanta-te antes que chegue lá alguém antes de nós."
"Já vou tia. Dá-me só um minuto."
Estremunhada, a rapariga levantou-se a meio da madrugada. Mal tinha acabado de se deitar e já estava novamente a pé. Sabia que era necessário se queriam ter água para beber e cozinhar. 
Todos os verões era assim. Aquele, no entanto, era muito pior porque muito mais seco. Não havia caído gota de chuva durante o inverno e a neve andou muito arredada. Terá nevado duas ou três vezes apenas. Para "compensar", houvera muitas geadas, imensas, enormes, más para quem não tinha nem roupa nem lenha.
Na primavera não rebentaram as nascentes, os rios e ribeiros quase enudeceram a sua belíssima canção. O verdejar dos campos durou pouco e os pequenos malmequeres não pintalgaram de branco, os campos ... 
Todos se queixavam, novos e velhos. As hortas eram difíceis de manter. O trabalho era redobrado e as noites passadas na busca insessante de água para regar. 
A terra, exaurida, recebeu a semente da batata e lutou muito para que ela sobrevivesse. Uma ou outra chuvada de verão, deu algum alento e era recebida com muitas bençãos a Santa Bárbara.
Lá foram as duas, a Fonte do Monte, onde havia uma fonte de mergulho com o mesmo nome, cada uma com dois cântaros para trazer água. Era muita a esperança... 
Lá chegadas, deram com a tia Engrácia a colher com um copo de lata a pouca água que havia, dádiva generosa da fonte quase seca. Tristeza sentiram tia e sobrinha. A coisa estava difícil. 
"Madrugou tia Engrácia." 
"Ó minha filha, nem me deitei. Não tenho gota em casa e preciso dela para amanhã porque tenho jeireiros e tenho de lhes fazer de comer."
"Vamos ver se ainda ninguém foi "À Pereira". Precisamos de alguma água para amanhã, pelo menos para beber."
"Não vos vale a pena. Já lá foi o meu Zé. Levou a mula e as alforjas cheias de cântaros. Se havia alguma água, já a trouxe. Ide lá a casa e levai um cântaro ou dois."
"Obrigada, tia Engrácia. Vamos lá, vamos, só que essa não se pode beber. Só serve para cozinhar. Ainda temos de arranjar alguma para beber. Vamos até "Atrás da Choça". A água ali é muito boa e fresca. Anda Maria, não temos tempo a perder."
Despediram-se da vizinha e lá foram as duas, ligeiras, iluminadas pelo imenso céu estrelado e pela lua que parecia guiá-las com o seu branco luar. 
Tropeção aqui, tropeção ali, uma boa meia hora depois, lá chegaram. Felizmente havia água para encher os quatro cântaros e mais alguns. Elas só levariam o necessário e mesmo assim não seria fácil dada a irregularidade do caminho e a escuridão da noite, agora ensombrada por algumas nuvens. "Tomara que anunciem chuva." Disseram as duas em uníssono. 
Não muito seguras, estremeciam ao mais pequeno estalido. A noite estava escura como breu e nem uma única alma se ouvia. Apenas os lobos uivavam de fome, ali, quase ao seu lado. A cada desconsolado uivo, eriçavam-se-lhe os cabelos. Nada podiam fazer para evitá-lo. Era instintivo, ancestral, primevo. 
Finalmente, o luar. Alguma luz para lhes facilitar a descida íngreme que tinham de empreender.
"Se os meus pais soubessem em que trabalhos ando eu metida..." Pensava Maria, absorta e preocupada com a tarefa de ter de transportar aqueles dois recipientes cheios de água até casa.
"Tia, isto pesa bastante." 
"Pois pesa, mas temos de levar esta água. Vamos devagar, parando aqui e ali. Lá chegaremos, não te preocupes."
Era impossível não o fazer. Uma rapariguinha vinda de São Paulo onde apenas bastava abrir a torneira para ter toda a água necessária...
A sorte ajuda os audazes, diz-se e desta vez assim foi. Chegado a casa, o tio Zé Tarela ouviu a mulher dizer que as duas raparigas tinham ido buscar água "Atrás da Choça", "coitadas"...
Apenas descarregou a sua carga, monta na mula e lá vai ele saber delas. Encontrou-as pelo caminho, completamente exaustas. 
A sua primeira reação ao barulho que ouviram foi de pânico e, imediatamente, de alívio quando reconheceram o tio Zé. A partir daí foi tudo muito fácil e divertido. Rapidamente chegaram a casa. 
Agradeceram a Deus por aquele homem tão bom que nunca pensava em si próprio e que estava sempre pronto para ajudar quem precisasse de ajuda...
Aqueles tempos, ainda bastante próximos, eram tempos de grande dureza. Na minha aldeia, quando regressei do Brasil, ainda não havia água canalizada. Existiam algumas, poucas, fontes de mergulho e havia anos de seca extrema. Felizmente, no ano seguinte, esse problema acabou. A água chegou, finalmente, trazida de um nascente existente no Serro de Penhas Juntas, em terras do Brito. 

Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt

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