segunda-feira, 27 de julho de 2015

TRUTA - Histórias em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Nu se caçã truitas a bragas aixutas”
[Provérbio mirandês]



Poderá parecer provocação trazer a terreiro um provérbio mirandês que colhi na ainda hoje importante obra de Sant’Anna Dionísio, intitulada Ares de Trás-os-Montes. Não é. É, antes prazenteira e merecida homenagem a Amadeu Ferreira grande paladino da língua mirandesa.
A palavra truta fala grego (trôktês, ou seja voraz), é um peixe carnívoro de águas frias correntes, astuto, talvez por essa razão seja tão cobiçado pelos pescadores, também porque a sua carne é muito saborosa. A astúcia da truta levou escritores de nomeada a torná-la paradigma de personagens dos seus livros, Roger Vailland deu o título de A Truta a um romance caracterizado pela ironia. O tremendo caçador e pescador conhecido pela alcunha O Negro de Milhão sabedor da manhosice das trutas, atacava-as a dinamite, assim o transmitiu a todos nós Artur Mirandela, em divertido texto que faz parte do livro intitulado Trás-os-Montes – Pessoas e Bichos.
A esbelteza das vorazes mas assustadiças trutas inspirou artistas plásticos, escultores, poetas, dramaturgos e romancistas e, certamente, continuará a inspirar. O poeta Eugénio de Castro, teceu um poema A Truta que, “prateada,/cheia de pimentas vermelhas...”
O fecundo escritor Aquilino Ribeiro dedicou páginas garridas de palavras bem aparelhadas às trutas, valendo bem a pena trazer à tona da água o breve trecho sobre fugidias, que faz parte do seu livro Dom Frei Bartolomeu. Escreveu Mestre Aquilino:
”- Pchit, pchit, há trutas, padre-mestre, há trutas! Volte atrás...
- Veja lá!?
- Duvida de mim?
- Rendo-me Reverendíssimo Senhor. Não posso duvidar que seja capaz de fazer milagres...
E ficou. De facto, depois de uma açordinha de pão trigo caseiro abeberado a azeite com um dente de alho, apresentaram-lhe as trutas. Mas eram pequeninas como bogas, e enfiadas pelos olhos numa caruma, como uma canga conjunta. Ao que estavam de tostadinhas, a crepitar nos dentes, eram deliciosas. O cozinheiro tinha-as frito em bom azeite, que o Senhor Arcebispo, embora detestasse acepipes finos, de estômago era delicado. O mais pequeno ranço causava-lhe náuseas insuportáveis. A certa altura disse o padre mestre:
- Estão tão boas, que até é pecado comê-las ao que sabem de bem.”
Neste pequeno mas refulgente texto saltam na sertã da análise gastronómica evidências de grande acuidade para todos quantos pretendem perceber os mecanismos de uma confecção culinária. A primeira prende-se com a qualidade dos produtos, alguns deles em desuso para nosso prejuízo, a segunda a sua conservação, “o mais pequeno ranço causava-lhe náuseas insuportáveis”, a terceira a técnica da fritura.
Esta cozedura só é considerada excelente quando a fritura se apresente: dourada, seca e estaladiça. Ora as trutas em causa “estavam tostadinhas, a crepitar nos dentes, eram deliciosas”.
O Dom Frei Bartolomeu dos Mártires jornadeou por terras de Bragança quando se dirigia a Trento, onde participou no célebre Concílio e espantou os conciliares pela profunda cultura, exigência, exemplo e resposta célere e adequada de modo a emudecer o contraditor.
Tivesse o Senhor Arcebispo vivido uns séculos mais tarde e, seguramente, não ficaria satisfeito com o comportamento das personagens religiosas que dão corpo ao romance O Cónego, cujo autor, A. M. Pires Cabral é distinto escritor do terrunho transmontano, melhor dito macedense.
Pela pertinácia do tema, pela relembrança de uma Pensão que conheci relativamente bem, transcrevo das páginas 220 e 221, do livro referido: “Chegou a Bragança já perto do meio-dia. Almoçou na Pensão Rucha, onde no longínquo ano de 1903 tinha sido comensal durante algum tempo – justamente antes da Patrocínia entrar ao seu serviço. O restaurante tinha agora outros donos e havia outra criada à servir à mesa, mas a boa qualidade familiar da comida era a mesma. Depois da sopa de lavrador e que rescendia à linguiça que lá cozera, vieram trutas de escabeche, boas trutas do rio Baceiro, com batatas cozidas”.
No ano de 1903, existiam na cidade o Hotel Brigantino, o Imperial e o Transmontano, a pensão em 1942 também era casa de pasto, tendo como responsável a Senhora Dona Conceição Rucha. No ano de 1950, muda de instalações, ocupando uma casa de boa traça existente na Rua Almirante Reis, onde antes tinha funcionado o Hotel Virgínia, depois pensão com o mesmo nome.
O sentimento do gosto sobrepõe-se à finitude do tempo, as afamadas trutas do Baceiro são marca maior das linhas de água existentes no concelho, a saliência do escabeche leva-nos a recuar nos séculos, aos muçulmanos invasores, pois a eles se deve a invenção desta técnica de conservação dos alimentos. Do “árabe (iskabage), molho feito à base de azeite, vinagre, cebola, alho e louro, que serve para condimentar e conservar peixe e carne”, assim reporta o Dicionário da Academia. O vetusto Cozinheiro dos Cozinheiros compilado por Paulo Plantier ensina que “há diversas formas de fazer escabeches: cozidos ou assados, quentes e frios”.
Os elogios às trutas do Baceiro são inteiramente justos, as do rio Sabor também não podem ser esquecidas na distribuição dos louvores, o conhecido escritor espanhol Júlio Llamazares no livro Trás-os-Montes – Un Viaje Português alude a uma opípara refeição tomada no reputado restaurante Dom Roberto em Gimonde, gabando-as vivazmente ao afirmar: “Pero lo mejor no es eso. Lo mejor, sin duda alguma, son las truchas del Sabor...”
As trutas originaram boas receitas praticadas no arco das sete cozeduras existentes, dando azo a qualificadas e saborosas representações culinárias, no entanto, a simplicidade das receitas escolhidas no referente à saborosidade não perdem no confronto com outras envolvendo grande número de ingredientes e condimentos .

Armando Fernandes

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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