terça-feira, 25 de junho de 2013

A cerâmica artesanal no distrito de Bragança.

Instituto Português do Património Cultural
Coimbra - 1982 Separata de Actas do Colóquio Sobre Artesanato
Comunicação, escrita em Bragança, aos 6 de Novembro de 1979.
P.e Belarmino Augusto Afonso

1. INTRODUÇÃO
Tanto a vida biológica como a cultural são marcadas por etapas decisivas, que, em vez de estabelecerem uma ruptura na linha evolutiva do progresso, mais realçam a sua unidade.
O aparecimento da cerâmica marcou profundamente a época  a que os historiadores chamam revolução neolítica. As formas tornam-se variadas e elegantes, e mais do que finalidade prática, correspondem também a uma necessidade estética. De paredes finas ou grossas, com muita ou pouca ornamentação, a cerâmica atingiu, mais do que qualquer outra invenção, um grau de perfeição e variedade tipológica invulgares.
Por natureza, o homem é inventor e dá a impressão que, logo que moldou o primeiro vaso cerâmico, descobriu as potencialidades que este material lhe fornecia para lhe transmitir formas existentes no subconsciente inventivo.
Comparando as duas culturas, a pré-histórica  e a actual, quase podemos concluir que, se não houve regressão, o progresso de hoje para ontem não foi muito acentuado.
Habituado a ver os louceiros nalgumas feiras do distrito de Bragança, ou acampados no rossio da aldeia, noto que o formato dos vasos pouco varia daquele que livros ou revistas da especialidade pré-histórica me transmitem.
As aldeias do distrito de Bragança viveram sempre bastante isoladas. Os acidentes orográficos ou hidrográficos dificultavam uma fácil comunicação de povos. daí uma certa estagnação e pouca variedade na ornamentação e formato dos vasos. O trasmontano, enquadrado num espaço geográfico eriçado de escolhos, climatéricos ou geográficos, teve sempre diante de si uma grande tarefa, dominar a natureza, adaptar-se a um habitat que, pelas suas características, o impedia de ser poeta ou artista. À excepção da zona do planalto mirandês, a variedade temática na ornamentação tem pouca amplitude.  Deixando a cerâmica, e passando para outros domínios da vida agrícola, essa escassez é também notória.
Nem todo o nordeste brigantino possui a mesma uniformidade geológica.  Daqui se conclui que a indústria cerâmica teve um desenvolvimento diferente, conforme a qualidade e abundância do barro.  A zona da terra fria, que engloba os concelhos de Vinhais, Bragança, Vimoso, Miranda do Douro o parte do de Mogadouro, possui, segundo me parece, características especiais na constituição do barro, que a zona quente, mais ao sul do distrito, não tem.  Numa sondagem um tanto superficial e incompleta, encontrei maior número de fornos, mais artesãos nas aldeias daqueles concelhos, que nas aldeias da zona sul do distrito.
Mas esta diferença não é propriamente a finalidade desta comunicação, mas tão somente apresentar um conspecto do que foi a actividade cerâmica-olaria e fabrico da telha no distrito de Bragança.  Comecemos pela olaria.
2. A olaria.  Raízes pré-históricas
 Onde vamos buscar as raízes da olaria do distrito de Bragança ? É tão antiga como os povos que por aqui passaram.  Recuando até à civilização neolítica o castreja, encontramos aqui o protótipo de uma cultura que se manteve até aos nossos dias.  Os oleiros de então transmitiram-nos formas do vasos que pouco diferem dos actuais.  Os restos ou vasos de cerâmica, encontrados na gruta pré-histórica de Dine (Bragança) ou nas ruínas dos inúmeros castros do distrito, confirmam a afirmação.  Pelo que me é dado conhecer, predominou sempre a cerâmica vermelha.  A ornamentação é pobre.  Limita-se a um simples cordão feito no bojo ou no pescoço do vaso.  Também aparece uma linha ondeada ou simples incisão, feitas na barriga do vaso.
Podemos afirmar que, com a colonização e pacificação romanas, a região encheu-se de pequenas vilas, sucedâneas dos castros, e com esta esta colonização intensa, a cerâmica teve um incremento notável.  No entanto, as formas neolíticas mantêm-se.  A romanização pouco mais fez do que manter as formas existentes.  Multiplica-se apenas o número de vasos, pois a agricultura exige recipientes em abundância para trans­porte de cereais e líquidos.  Não creio que a ânfora romana tenha ido muito além do litoral.  A distância a que ficavam as nossas regiões e o difícil transporte através dos ásperos caminhos, impediu certamente uma grande dispersão cultural destes utensílios.
Tanto a alta como a baixa Idade Média, esta mais agrícola, nas terras de Bragança, incentivou o cultivo e desenvolvimento da cerâmica.  Quer a fonte estivesse longe ou no centro da aldeia, ainda nos é familiar o quadro da moça ou mulher aldeã, de cântaro à cabeça, tendo por baixo uma rodela de pano.  O retrato popular de um Santo António mila­greiro a colar os cacos do cântaro que a moça namoradeira deixou cair, continua ou enquadra-se dentro dessa tradição medieval.  Até o adagiário popular lançou mão do cântaro para fazer rifões. «Tantas vezes o cântaro vai à fonte.até-,que4á--dei»-,a asa».
O emprego dos vasos mais de acordo com as possibilidades económicas destas gentes trasmontanas.  Acrescente-se ainda o prazer de, no pino do verão, beber um golo de água fresca pela cântara sempre à mão, nas pesadas fainas agrícolas: sega do feno, ceifa do cereal, colheitas, malha do cereal nas eiras.
Tal como no resto do país, também durante os séculos xvII e xviii se deu aqui um surto na olaria.  E esse surto manteve-se até meados dó século xix.  Então, a época liberal levou à arrematarão muitos baldios, prados onde se arrancava o barro e se estendia a loiça ou a telha a secar.  Na minha aldeia há um local chamado Prado dos Hostis, que hoje é uma veiga fértil de hortas particulares, e nessa altura era lugar público.
Os fornos da telha e olaria localizavam-se geralmente nestas zonas.  Quando se tornaram terrenos particulares, os fornos desapareceram.
Resquícios ainda dessa presença simpática do oleiro notam-se na toponímia.  Em Bragança há a rua dos Oleiros, nome que ainda está vivo nas pessoas mais velhas, apesar de outro nome moderno tentar substituí-la. «Oleirinhos», «fornos», «touça dos fornos», são alguns topó­nimos dentre outros conhecidos no distrito.
2.1 -Nomes e uso das vasilhas
 O «eântaro » entrou no vocabulário não só como recipiente, mas também como medida.  O noivo de uma terra estranha pagava o vinho, como uma espécie de multa, que consistia geralmente num cântaro de vinho.  Em terras de Bragança, cântara é sinónimo de vasilha de barro ou de lata, mais pequena que o cântaro.
«Talha».  Levava de dois cântaros para cima.  Feita de cerâmica vermelha e às vezes preta, lisa ou com sulcos concêntricos cavados no corpo, em toda a volta, desde o pescoço até ao fundo, tinha o tem diversas serventias.  Para curar as azeitonas, como reservatório de líquidos.
--É uma talha mais pequena.  Nela se mete o fumeiro depois de seco para se conservar e ir gastando durante o ano.  Também serve para guardar o azeite.
«Panela» -Pode servir para guardar o pingo.  Sem indicar uma medida certa, pode levar uns cinco litros.  Aparece só com uma asa e também com duas, que partem do bojo do bordo do vaso até ao bojo do mesmo.  Também lhe chamam «pingueira».
Outros objectos cerâmicas aparecem na casa humilde do lavrador trasmontano: púcaros, algidares, barrinhões, cacharros, pichorras, caçoilas, panelas de três pés, que serviam para cozer as castanhas.  De barro era a baixela humilde destes agricultores.
3. A oleira de Pinela
 No distrito de Bragança apenas existem dois oleiros.  Uma oleira trabalha na freguesia de Pinela, concelho de Bragança; outro oleiro na aldeia do Felgar, concelho de Moncorvo.
Vamos fazer uma referência a cada um deles.  Pinela tem remotas tradições da indústria artesanal.  As aldeias vizinhas chamam aos seus habitantes «barrinhões».  Falámos com a única oleira em actividade(').  Tem cinco filhos e nenhum aprendeu.  Este trabalho era feito por mulheres (2).  Quando executavam peças maiores tinham necessidade de um ajudante para dar à roda.  Peças pequenas são fabricados pela própria oleira.  Esta louceira fabrica, segundo me diz, quatro espécies de cântaros, alguidares, vasos de flores, etc.  Nisto não desmarca das outras louceiras que há poucos anos trabalhavam ainda.
Mas qual a razão desta divisão de trabalho e sua execução por mulheres?  O motivo principal parece residir na ocupação do homem
(1)   Chama-se Maria Cândida Afonso, por alcunha a pichorra».  Tem 50 anos, e durante a última semana de Outubro de 1978 esteve no Estoril, na Semana de Trás-os-Montes que lá se realizou.
(2) «Cá num era uso os homens trabalharem nisto», respondeu a senhora Maria José Vilafranca, de 90 anos.
(') Maria Carolina Caravela deixou de trabalhar há 15 anos; Eufênia de Jesus, há 5; Laura Caravela, há 16; Encarnação dos Anjos há 12; Felicidade Afonso, há 6.
noutros trabalhos mais pesados, nessa altura.  O fabrico dos vasos, durante o mês de Maio e durante todos os meses de verão, coincidia com o aperto das fainas agrícolas.  A mulher fazia as lides da casa, regava a horta, e, nos intervalos de mais ou menos folga, contribuía para o equilíbrio financeiro com esse trabalho suplementar, que apesar de atribuído à mulher, era também muito duro.  Embora a razão principal seja a ocupação do homem, com o andar do tempo, também se foi criando a noção de desprestígio para o homem que executasse trabalhos atribuídos à mulher.
A única oleira que existe agora não tem mãos a medir.  Vende para Macedo de Cavaleiros, Mirandela, e, no dia 3 de Maio, na célebre Feira das Cantarinhas em Bragança, vende toda a produção que leva. É um trabalho duro.  O barro não existe na aldeia.  Vão buscá-lo às minas de Paredes.  Também o havia., em Paçó, mas de inferior qualidade.  O barro é branco.  Vinha para a aldeia em carros de bois ou às cargas.  Era arrancado não à superfície, mas um pouco mais em profundidade, porque a argila era melhor.
3.1 - O  barro.  Execução dos vasos
Podemos dizer que a arranca do barro é a primeira fase.  A seguir estende-se numa eira.  Com um sacho abrem-se sulcos para que seque bem.  Esmaga-se e mói-se.  Depois peneira-se com a peneira do pão sobre um plástico ou chão varrido.  Além deste barro, há o barro fermento.  Junta-se, na devida altura, ao primeiro para que tenha maior consistência.  Caso contrário a vasilha não se fazia.  O barro fermento ia buscar-se perto de lzeda, também em carros ou cargas.  Arrancava-se com um sacho largo. É guardado em casa.  O barro amassa-se com um maço de madeira.  E o barreiro fica arrecadado numa loja, ou baixo da casa, junto como um mó de cereal.
Num masseirão, recipiente feito de pedra ou madeira, deita-se o fermento que é amassado com água e coado por uma vassoura, feita de giestas.  Este fermento cai sobre o barro branco já peneirado.  Oito cestas de barro levam uma de fermento.  Depois de amassado com fermento, o barro toma a forma de um paralelepípedo.  Faziam quatro ou cinco, conforme o gasto de cada dia.  O barro amassa-se tal como o pão, e, depois de bem «sovado» e molhado com água grossa, pode ficar um ou dois dias que não endurece.
Chega agora o momento de ir à roda do oleiro.  As peças maiores são feitas de três vezes.  Mas a «pichorrinha», porque pequena, é feita de uma só vez.  Primeiro faz-se o «caco», isto é, o fundo do vaso.  A seguir faz-se o «bóujaro» (bojo).  E na terceira etapa faz-se o pescoço e a asa.
Regra geral, a oleira faz em série todos os «cacos» (fundos), pondo-os depois a secar ao sol.  Vão a «entesar tantinho», como dizem.  Tocando os cacos com os dedos, sabem se estão na altura de começar a segunda parte do vaso. É bom de ver que o bom ou mau tempo influi na secagem da peça.
Os oleiros trabalham em frente da casa ou num quintal.
3.2-0 entornar e cozer da louça
Terminando a tarefa da execução dos vasos, vai a outra fase, o enfornar.  Porque o forno é grande, leva cerca de 500 peças.  Para o encher juntavam a louça de diversas louceiras, quando eram muitas.  Este trabalho ocupa pelo menos duas mulheres, mas ajudavam mais pessoas, regra geral.  Levava cerca de três horas a enformar.  O forno nunca ficava totalmente cheio, porque depois era necessário deitar por cima o borralho.  A louça devia estar muito bem «amanhadinha» (composta), para cozer bem.  Quanto mais miúda fosse a loiça, melhor cozia.  A lenha tinha sido trazida do monte, em carros.  A fornada leva dois carros de bois.  A lenha pode ser de giestas. estevas, urzes, ou charguaço.  Só se cozia bem com tempo bom, pois a lenha molhada não arde bem.
«Borralhos»- Enfornada a louça, fazia-se a «esfumadela».  Era a primeira fogueira que se fazia na fornalha.  A louça aquece-se lentamente para não estoirar.  Esta «esfumadela», mais morosa que os outros borralhos subsequentes, levaria duas horas a fazer.  A seguir tira-se o borralho para fora com o «rodo» e apaga-se à entrada da boca do forno, com água.  Um homem deitava-o depois pela boca lateral para cima das peças de barro.  Este borralho apagado era lançado em maior quantidade nas bordas que no centro do forno.  No centro a louça coze melhor que nas bordas e precisa de menos borralho.
Faziam-se mais três borralhos, resultantes do enfornamento de mais lenha, que era empurrada pela boca do forno com uma estaca feita de freixo ou carvalho.  Com um ranhadouro levantam-se ao ar os torgos de urze.  Uma boa ranhadela aclara mais a louça.  O último dos três borralhos chama-se «aclaradela», porque serve para aclarar a louça.  Depois desta aclaradela não pode haver fumo, caso contrário a louça fica feia.  Quanto mais quente estivesse o forno, melhor, mais lenha economizava.  Um forno já quente pode poupar um «bocal» de lenha, isto é, um borralho.
A louça começa a ser cozida à noite.  Se a tarefa estiver terminada à meia noite ou onze horas, no dia seguinte, pela manhã, pode desen­fornar-se.  Trabalho de mulheres, a loiça era apartada, conforme a marca impressa pela oleira.  Podia ser uma cruz, uma pocinha, etc,.
Quando se metia ao forno a louça bem seca, aproveitava-se toda.  Havia fornadas em que se estragavam mais de trinta peças.
3.3 - Comercialização da louça
 A força desta tarefa começava em princípios de Maio.  As oleiras de Pinela percorriam as feiras dos Chãos, Izeda, Vimioso, Vinhais, Mirandela.  Transportada no dorso de burros, iam fazendo negócio pelo caminho.  Paravam também nas aldeias e ali a venda era feita a dinheiro ou a troco de géneros (centeio, trigo, feijão, grão-de-bico, batatas, castanhas).  Nos sólidos trocava-se a vasilha pelo que ela levava como medida.
A olaria de Pinela era afamada em todo o nordeste do distrito.  Com formato próprio que o distinguia da outra louça, as «cântaras de Pinela» eram apreciadas porque faziam a água muito fresca.  Ainda hoje se diz, quando faz falta alguém para determinado cargo ou lugar: - «Olha, encomenda-o em Pinela».
A loiça de Pinela, principalmente as cântaras, são de paredes grossas, pesadas, com um bojo bastante avantajado, e têm uma cor esbranquiçada.,
No perímetro desta aldeia havia outras onde se fabricava também olaria('), mas não tão afamada.  Em Calvelhe deixou de se fabricar há mais de sessenta anos a louça de cerâmica negra.  Houve aqui três fornos particulares que desapareceram totalmente.  Nesta aldeia a olaria era trabalho de homens.  Tal como em Pinela, o fabrico coincidia com a época do calor, mas também se fabricava no Inverno.  Neste caso, a louça punha-se a secar na cozinha, sobre tábuas assentes nos paus onde se secava o fumeiro.
(1)   Vila Boa de Serapicos, Paredes, Grijó, Calvelhe.
(2)       Soube pelo informador, Amador José Porfírio, de 88 anos, que os oleiros que aqui trabalharam, eram da região de Chaves, talvez de Nantes, e vieram para Calvelhe, onde casaram.  O primeiro louceiro que veio, chamava-se João Barreira, e foi ele que trouxe os outros: Albano, Francisco Margarido.
Um cântaro pequeno leva cerca de dez minutos a executar, mas uma cantarinha, das que se vendem no dia 3 de Maio, em Bragança, leva apenas cinco minutos.  Um cântaro vulgar, em tempo seco, leva uma hora a executar.
3.4 - Utensílios de fabrico
Para obter peças tão belas, a oleira de Pinela, assim como qualquer outro oleiro, usa um número muito limitado de utensílios.
«Fanhadouro» - Tabuínha que encosta aos dedos e do lado de fora ao barro, e serve para o ir adelgaçando.  Tem cerca de 12 a 15 em de comprido, e pode ser rectangular ou circular.
«Coura» - Pano de pardo, áspero, que serve para «lavrar» o barro.  Outro mais macio serve para alisar a peça.
«Galga» - Quadrado de madeira assente e colocada por pressão sobre a roda, com um pedacinho de barro.  Nela se coloca o barro a trabalhar.
Convém fazer uma breve referência ao único forno de cozer a louça que existe em Pinela. É propriedade da aldeia.  Arquitectonicamente é uma maravilha.  Feito de xisto, é arrendondado na parte de trás e termina em cúpula.  De fronte tem dois panos de parede fazendo estas esquina perfeita, no ponto de encontro.  Provido de duas bocas, a mais pequena por onde se mete a lenha, e a maior, lateral, por onde se mete a louça e deita o borralho.  Na altura maior, a contar da base e incluindo a abóbada, tem 4,13 m, e de largura, possui 3,25 m. Interiormente tem de diâmetro 2,30 m.
Também a roda do oleiro, feita de castanho ou freixo, tem de diâmetro 0,46 m, e assenta sobre um eixo ou veio de 0,29 m de altura.
4. O oleiro do Felgar
Porque o oleiro do Felgar (1) é um dos dois únicos do distrito em actividade, e trabalha na zona de Moncorvo.  Parece-me útil fazer-lhe uma referência.  A sua oficina é algo diferente da de Pinela.  A roda é diferente, e o barro é moído não à mão, mas por tracção animal.
(1) Chama-se António Augusto Rebouta e trabalha há 56 anos.  Filho de oleiros, tem 70 anos. É auxiliado por sua mulher Maria Augusta Fernandes, de 63 anos.
5. A telha.  Sua importância económica
O fabrico da telha estava ligado a pessoas de um nível social melhor.  Exigia um carro, geralmente próprio, para ir buscar o barro, e ainda uma junta de bois ou vacas para amassar o barro.  Isto não quer dizer que a distância social fosse grande, pois na altura, há 40, 50 e mais anos, quando esta indústria ora ainda florescente, o viver dos agricultores remediados não ia além do simples cabaneiro que possuía uma parelha de burros.  O trabalho duro era herança comunitária de todos.  Com mais ou menos posses, uns davam os braços, outros o carro e bois, o comunitariamente, faziam um trabalho muito duro como afirmam ainda aqueles que o executavam.
Uma fornada de telha vinha equilibrar ou suprir as dívidas de uma má colheita, ou pagar por um filho que foi necessário livrar da tropa.
Meados de Agosto ou mesmo fins, depois de se terem recolhido as últimas palhas da colheita, e arrebanhado bem a eira, limpava-se o barreiro, poça enorme, capaz de conter 9 ou 10 carros de barro.  Os carros de bois chiavam a valer para o transportar para o barreiro, pois o lugar de arranque nem sempre ficava perto.
Um bom número de fornos, de que conseguimos notícia, eram da comunidade local.  Não admira pois que este tipo de actividade artesanal se enquadrasse perfeitamente dentro das banalidades - forno, moinho, forja e lagar - da economia medieval agro-pastoril.  No entanto, ao lado dos fornos comunitários, aparece um ou outro, em coexistência, que é particular.  Alguns fornos particulares acabaram por se tornar quase públicos, em virtude do sistema e partilha de heranças. É que havia certos bens na aldeia que nunca se herdavam integralmente, apenas se partilhavam dessa herança.  O forno de cozer o pão, as águas, uma passagem, umas escadas, servem de exemplo.
5. 1 - Localização e formato dos fornos
Regra geral, os fornos de cozer a telha erguem-se fora da aldeia.  Situam-se quase sempre no mesmo lugar das eiras de malhar o cereal.  Os fornos retiravam-se da aldeia para evitar os incêndios, e também como necessidade de espaço mais livre.
Os restos de fornos que visitei ou eram rectangulares, na sua maioria, ou quadrados.  Feitos por pedreiros da terra, as paredes eram de xisto, e as pedras eram presas com barro, quer porque a cal era pouco usada, quer ainda porque o barro é um bom refractor do ar.  Visto à distância, o forno apresenta sempre o feitio de uma pequena mamoa sem terra pela parte de cima.  A terra aglomerada dos lados tinha a finalidade de conservar o calor e facilitar o acesso ao forno.  Dos lados da boca de meter a lenha o conduzindo até lá há quase sempre um caminho ou passagem, ladeado por duas pequenas trincheiras dá terra.  Esta trincheira protegia os homens que metiam a lenha na própria boca do forno.
Interiormente, o forno tem a cerca de 0,70 m de altura do chão, três «azimbros», sustentáculos em forma de arco, que ligados e equili­brados entre si pelos «tições» (pedras), formavam a grelha onde se colocava a telha.  Os «azimbros» construíam-se sobre um molde, que podia ser, a camba de um moinho, ou outro pau arqueado, e eram feitos de pedras espetadas em forma de bico, e ligadas com barro.  Os «tições», além de servirem para estabelecer o equilíbrio desta grelha, tinham também como finalidade suportar a telha.
Quando o forno se estragava, era a aldeia que o compunha.
Nalguns casos, em cada fornada de telha, dava-se um tanto para a igreja em dinheiro, ou em telhas.  O barro era transportado em carros de bois ou vacas para o barreiro ou pio. A piada levava 9 ou 10 carros.
5.2 - Fases  do fabrico da telha
1 - Arrancar o barro - Vinha do baldio, ou também de algumas propriedades particulares.  Neste caso pagava-se um tanto pelo barro (1).
2 - Amassar - O barreiro ficava junto do lugar de fácil acesso água.  Se esta não estava perto, ia então buscar-se numa pipa.  Com um sacho abriam-se sulcos no barro, de modo que a água o embebesse muito bem.  Logo a seguir, uma junta ou duas de bois ou vacas entravam jungidas no barreiro para o amassar.  Nesta operação tomavam parte duas pessoas para guiar e tocar os bois e outra para deitar a água, que corria através de uma agueira para o amassadouro (1).  Esta operação levava quase um dia.  Depois amontoava-se, como quem junta o pão na masseira.  Cada fornada de telha levava duas ou três fiadas.'
(1) Em Paradinha de Outeiro dava-se ao dono do barro um carro de telha por cada 9 ou 10 carros de barro arrancado, isto é, por uma fornada.
(2) Em Caçarelhos (Vimioso), também usavam as mulas para amassar o barro.
Nalguns lugares ou aldeias não se amassava o barro todo de uma só vez, num lugar, mas faziam-se amassadouros em pios diferentes.
3 - Talhar o barro - Com uma pá ou sacha larga, cortava-se o barro em cruz e puxava-se para o lado.  Uma mulher apanhava-o o lançava o barro assim cortado para o meio do barreiro.  Um homem levava uma hora e meia a cortar o barreiro.  Depois cobria-se com alguns dos seguintes materiais: palha, mantas de farrapos, torrões ou ramos de castanheira.  Quase sempre começava de manhã esta função de cortar o barro.
4 - Execução da telha - O  talhador, homem que recebia com a mão esquerda um bolo de barro, com cerca de dois quilos, deitava-o na forma ou grade - objecto de forma rectangular feito de ferro ­e com a mão direita espalhava uma mão cheia de pó sobre o «talheiro» -tábua onde assentava a forma.  Um bom talhador podia cortar, num dia, cerca de 1500 telhas.
5 - Secagem - À medida que o talhador acabava de fazer a telha no molde - grade - lançava-a para outro molde redondo, chamado «galápio ou galapo».  Uma mulher ia estendendo a telha num eirado, em filas, tirando o galapo de baixo.  Levava cerca de um dia a secar.
6 - Juntar a telha - Aos montículos, colocava-se debaixo de um cabanal, feito de ramos de árvore, se ameaçava chuva, à espera de ir para o forno.  Se o tempo estivesse bom, podia ficar junta no eirado, em pequenas rimas de 4 a 4, ou 5 a 5.
7 - Enfornar - A telha era transportada à cabeça ou debaixo do braço de mulheres ou garotos.  Um homem dentro do forno e outro numa escada, encostada às paredes do forno, iam-na dispondo em adagues ou filas dentro do forno.  A primeira camada, que devia levar 7 ou 8 fiadas, colocava-se no sentido longitudinal, e a camada seguinte, no sentido transversal a esta.  Uma fornada levava a enfornar um dia a 7 ou 8 pessoas.  A fornada levava 4 ou 5 milheiros, conforme o tamanho do forno.
8-Cozer a telha - Era à noite que começava esta operação.  Ocupava seis homens, que se revezavam dois a dois para meter a lenha no forno.  Gastavam-se cerca de seis carros de lenha.  O forneiro devia ter tino para distribuir bem o calor à frente e atrás.  Com um ranhadouro de carvalho ou freixo, «abria» ou «tapava» o forno.  Quer dizer, distribuía o calor à frente e atrás, para que a telha cozesse por igual.  Se houvesse calor demais a telha torcia.  O bom forneiro conheça, pela cor da chama e estalido característico, se a função estava a correr bem.  Terminada a cozedura, tapava-se a parte superior do forno com torrões, ou também a boca de entrada.  Nalguns lugares ou aldeias, o forno cozia 3 e 4 vezes por semana(').
8 - Desenfornar - Depois de cozida a telha ficava a arrefecer um dia e uma noite, e desenfornava-se ao amanhecer.  Noutros lugares demorava mais tempo a arrefecer.  Juntavam-se muitas pessoas, e cada um, conforme podia, levava «carrelos» (um braçado de telha) para a «roda», local onde se colocava a telha.
5.3 - Utensílios
Os utensílios usados no fabrico da telha são os seguintes:
1 - Grade - Rectângulo de ferro, mais estreito numa das extre­midades, onde se deitava o barro.
2 - Galapo - Molde feito de choupo ou castanho, em forma de telha, e provido de um pequeno cabo, onde se coloca o barro que sai da forma.
3 - Raseiro - Pau redondo, com cerca de 0,30 m de comprimento e 0,05 m de diâmetro, para alisar a telha sobre a grade.
4 - Masseiro - Recipiente feito de madeira ou cavado num cepo.  Contém água para o talhador molhar as mãos.
5 - Talheiro - Tábua larga ou mesa.  Assentava nele a grade, e servia para suporte do barro enquadrado na grade.
6 - Espadagão - Pau comprido, de secção triangular, com que se açoitava o barro para o amaciar, depois de pisado pelos animais.
7 - Rodo - Espécie de engaço para puxar as brasas.
8 - Lata - Vareiro de carvalho ou freixo, com cerca de 5 metros, para levantar a lenha (1).
9 - Ranhadouro - O mesmo que lata.
10 - Latão - Badil grande, feito de folha de ferro, para deitar as brasas sobre o forno (3).
(1) Em Castro de Avelãs, Bragança, à meia noite, em plena faina de enfornar, ceava-se carneiro com batatas guisadas e vinho.  Era uma refeição muito boa e apetecida.
(2)      Dizia-se em Castro de Avelãs (Bragança), «dar lata ao forno», para indicar a operação de ranhar o forno.
5.4 - Comercialização
Há trinta ou quarenta anos o tractor não era ainda conhecido em Trás-os-Montes.  A telha era transportada em carros de bois ou dorso de animais.  Nunca ficava telha por vender.  Em Salsas chegavam a fabricar 100 fornadas por época, o equivalente a 50 000 telhas.  Tudo se vendia.  O facto da aldeia estar colocada à beira do caminho de forro, também influía no fabrico abundante e na fácil comercialização.  Certas localidades tinham fama pelo fabrico da sua telha.  Os talhadores de Salsas chegavam a ir para os concelhos de Mirandela e Macedo de Cavaleiros (1).  Cada carro de telha, que levava 250 telhas, custava há trinta anos cerca de 150 00. Cada telha começou por custar, um pouco antes dessa data, $20; mais tarde começou a custar $50 e 1$00.
Embora em menor quantidade, encontramos também, ligado ao fabrico da telha, uma outra espécie de objectos cerâmicas.  Fabricavam-se os tijolos grosseiros, chamados tijolos burros, e também os ladrilhos.  Estes usavam-se muito nos fornos.
Estes ladrilhos encontramo-los como material de construção numa época muito recuada.  O mosteiro medieval de Avelãs é notável pelas suas ábsides e absidíolos, em virtude de serem ladrilhos.
De encomenda também aparece o telhão, telha mais comprida e maior, usada nos beirais de casas ricas.
Há trinta anos o talhador Desidério dos Santos, que agora tem 96 anos, ia ganhar 30 00, quando era chamado para outra aldeia.  A enformadeira ganhava apenas 10$00.
6. Convívio e encontro de pessoas
Embora o trabalho fosse muito duro, todos os informadores com quem falei, foram unânimes em descrevê-lo como uma festa.  O trabalho físico não embotava o espírito. e a cabaça de vinho ia espevitando o engenho, de modo a que nas funções atrás descritas, houvesse alegria.  Quando havia sinais de chuva, toda a gente ajudava para que a telha que estava por enfornar, não se estragasse., Havia bailes e cantigas.
Quero-me ir e bou-me / E não volto aqui mais. 1 Dize-me, amor bonito, / a razão por que te vais. cantava-se em Salsas, na eira, junto do forno de cozer a loiça.
Também em Salsas, quando se acabava de talhar a telha, os garotos espetavam raminhos no barro.  Eram eles também que acribavam o pó em qualquer caminho poeirento, para ser usado no dia seguinte no talheiro, debaixo da telha que ia ser feita.
Havia quatro refeições: almoço, jantar, merenda e ceia.  Comia-se do que a casa colhia: batatas, feijões, grão-de-bico, carne de porco. À merenda davam sardinhas com cebolas e tomate.  Se sobravam, comiam-se à noite, assadas nas, brasas.
Era um trabalho que exigia muitos braços, mas quando feito na aldeia, nunca se pagava porque trabalhavam uns para os outros, à tornajeira.  Essencialmente comunitário este trabalho criava laços de amizade e solidariedade, que o industrialismo de hoje vai destruindo.
7. Declínio desta actividade artesanal.  Factores
No distrito de Bragança os oleiros estão reduzidos a dois, e há apenas um forno de telha em Atenor, concelho de Miranda do Douro, a funcionar.
O oleiro foi desaparecendo e declinando primeiro.  A cerâmica artesanal, há cerca de 40 anos, tinha ainda uma actividade regular, mas muitos fornos terminaram já a sua actividade há 80, 100 anos, e talvez mais.
Podemos apresentar como factores que estão na base de tal extinção os seguintes:
1 - O desaparecimento de baldios na época liberal, de que já falei. 
2 - A emigração dos fins do século XIX e princípios do XX, para o Brasil.
3 - A dificuldade em arranjar lenha, pois, há cerca de 40 anos, praticou-se uma lavoura cerealífera intensiva, mesmo nas terras que nada davam, senão mato rasteiro.
4 - A industrialização da telha marselha começou também há pouco mais de 40 anos a fazer concorrência à velha telha portuguesa ou mourisca, de capa e canal.- Com a promessa de cobrir mais espaço de telhado em menor lapso de tempo, e ainda a atracção que a novidade causa, levou os aldeões a praticarem gradualmente uma indústria de grande valor económico e social.
Não me parece que a emigração actual para a Europa tenha afectado a produção artesanal da telha. O colapso já se tinha dado.
Na maior parte das aldeias desapareceram totalmente os fornos e perdeu-se quase a memória deles.  Noutras ainda existem restos, com paredes desmoronadas e cheias de silvas(1) .  Muitos outros lugares apresentam apenas uma depressão de terreno, onde existiu um fome.  A pedra foi tirada para qualquer outra propriedade.
Tentámos trazer a este encontro uma amostra mínima dos fornos que teriam existido no distrito de Bragança.  Não chega à centena os que apresentamos, mas, atendendo a que o distrito tem 298 freguesias, não contando muitos outros lugares e aldeias, podemos adiantar que teriam existido cerca de 400 fornos de telha.
Mandámos inquéritos a todos os Ciclos e Escolas Secundárias do distrito, mas nem todos corresponderam.  Esta primeira iniciativa terá de ser completada com outra mais pessoal.  Só in loco, em contacto com as pessoas, e também com os arquivos antigos, se poderá trazer à luz um número mais completo.

Bragança, 6 de Novembro de 1979.
(1) Por exemplo, Salsas, Serapicos, Vimioso, Lousa, Peleias, etc.
Em Vilar Seco de Lomba existem restos de um forno de telha, na Alamela.

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