domingo, 22 de março de 2020

FOLAR e BOLAS, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Folar. Bolo. Fogaça. Bolo ou outro objecto que pela paschoa dão os padrinhos aos afilhados. Tirar o folar, a visita que no dia de Paschoa e seguintes o parocho faz a todos os seus freguezes, para lhes dar as boas festa e cobrar o direito parochial referido.”
[in Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza, Imprensa Nacional, edição 1881.]
“Folar: Bolo de massa com ovos cozidos em cima, e que se usa na Páscoa. Presente que ...”
[in Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva.]

“Folar (fúlar). (De origem obscura). Bolo recheado de ovos cozidos inteiros, que se come, tradicionalmente, pela Páscoa. Presente que...”

[in Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa]

O costume de o pároco ser obsequiado com folar é corrente em terras transmontanas e beiroas, Aquilino Ribeiro em Terras do Demo lembra o dito hábito. Escreveu ele: “E, dizendo isto, rompeu de roquete, sombreiro cor de vinho aberto sobre a calva, seguido do Chico Brás para erguer o folar...”, e mais adiante: “Recebia-se a visita pascal na casa de fora, armada com a melhor lençaria, lençóis bordados, colchas de algodão em xadrez, mantas antigas de chita com papagaios de oiro, cortiços de abelhas, rosas do Japão cor de carne, a encher um fundo, lavrado como leira, a branco e azul de mar. Sobre a arca, atoalhada do mais puro linho apresentava-se o folar...”
Trabalhos de vária índole salientam a quadra pascal como época de grande significado de matriz religiosa, exaltada pelos presentes cerimoniais, sendo os de cariz alimentar conhecidos por folares.
Num trabalho intitulado Folares – et oeufs de Pacques au Portugal o investigador Ernesto Veiga de Oliveira explica a génese do folar e as suas diferentes espécies. O reputado etnógrafo salienta que o termo genérico “folares”, em análise “mais restrita e mais precisa, designa um certo tipo de bola, específica do ciclo pascal, que conforme os casos, é ou pode ser objecto desses presentes”, acrescentando que existem em Portugal “diferentes espécies de folares”.
Os três dicionários trazidos à colação na entrada do texto realçam ser o folar presente dos padrinhos aos afilhados, feito de massa, acrescento ainda o “velho” dicionário Moraes que indica ser latina a matriz da palavra “floralis”, outros dicionaristas sugerem raízes francesas e germânicas para este bolo.
Na história global intulada Cake, Nicola Humble recua até aos egípcios, gregos e romanos para definir as origens de um bolo repleto de conotações religiosas, reproduzindo ainda um detalhe do Monumento Nereide (400 b.C.), onde se vêem duas figuras levando em procissão dois bolos cuja forma é a dos folares. Em Food, the History of Taste, H. D. Miller, sugere “que os etimologistas modernos erraram ao identificar a palavra inglesa cake como tendo origem em palavra do nórdico antigo que significava massa de alguma coisa, em vez de indicar uma palavra persa ou árabe perfeitamente adequada, idêntica a um vocábulo sumério, ainda mais antigo para expressar a mesma coisa.”
Sabe-se que bolos e bolas não podiam ser esquecidos nas ementas dos sumptuosos banquetes da corte persa, entrando no rol das iguarias oferecidas nos sacrifícios, mas desconhecemos os seus conteúdos, não sendo possível fazer-se a precisa reconstrução culinária, temos de aceitar a versões que nos chegaram a maioria delas através de relatos literários, pois os livros de receitas perderam-se na voragem do tempo.
Com precisão, existem receituários credíveis, sabemos quão apreciados eram, e são, os bolos no universo da religião judaica e da muçulmana. Nas festividades de Pessach (festa litúrgica da Primavera) o pão-de-ló e o bolo de tâmaras têm o estatuto de receitas carismáticas. O culminar do Pessach é a refeição do Seder comendo-se a Matzá um pão chato e quadrado, num tamanho uniforme, feito com buraquinhos na crosta da massa a impedir a formação de bolhas de ar. Só leva farinha, a espessura é fina, não devendo demorar mais de dezoito minutos a cozer no forno. Há quem defenda que o folar deriva deste pão, sendo um exemplo de astúcia dos cristãos-novos para fugirem à Inquisição, recheando-o com carne de aves.
Ora, a presença judaica na Península Ibérica iniciou-se antes da vinda dos muçulmanos e, se os segundos deixaram marcas nítidas nas artes culinárias portuguesas, tal como as da primeira, no entanto, tiveram de ser “baptizadas” dadas as seculares perseguições de que foi vítima, movidas pela inveja popular a sustentarem a política de repressão perpetrada pela Inquisição.
Folar preparado de massa seca, doce, e ligada, feito com farinha de trigo, ovos, leite, azeite, banha ou pingue, açúcar e fermento, condimentado com canela e ervas aromáticas – assumindo uma forma de regueifa ou fogaça, levando por cima um ou vários ovos cozidos, é no parecer de Ernesto Veiga de Oliveira a receita mais difundida em Portugal. Em “certos lugares” os ovos desse preparado “são tingidos, meio incrustados e visíveis sobre a massa que os recobrem.”
No receituário russo comemorativo da Páscoa além dos ovos tingidos de vermelho (o sangue de Cristo), aparecem pães de especiarias e bolos em forma de cordeiro, coelho, e pombas. Na Grécia acontece o mesmo, além do pão da Páscoa tsuréki: preparado de açúcar, amêndoas, canela, farinha, leite, manteiga, ovos, sementes de sésamo, uma gema de ovo e um ovo pintado de vermelho, não podem faltar as nurékias (coelhos com amêndoas de massa e levedura), coroas decoradas e roscas entrançadas. O veio comum dos dois receituários é a Igreja ortodoxa, mas a matriz entronca mais fundo, apontando como exemplo apenas Portugal, encontramos folares zoomórficos (lagartos, borregos, pombos, pintos) na zona de Elvas, os folares de Ul (localidade célebre pelo fabrico de pão) mostram galinhas por cima de um ovo cozido com a casca pintada de vermelho, ainda adornado com diversas frutas. Mais exemplos de folares deste género vêm assinalados no livro Doçaria Popular Portuguesa, de D. Sebastião Pessanha.
O folar da Páscoa assume profundo significado simbólico nas comunidades transmontanas, outrora as famílias atacadas pela pobreza faziam grandes esforços no sentido de o apresentarem sobre a mesa quando o pároco visitava a suas casas para serem benzidas. Os folares podiam ser dominados pela avareza no emprego de carnes e ovos, no entanto, a tradição não era transgredida. O emérito germanista Paulo Quintela, bragançano de primeiro quilate não dispensava o folar, “um folar de Páscoa de Trás-os-Montes que a irmã Aninhas lhe mandava de Bragança”, obviamente, bem feito e prenho de carnes e ovos.
Existem diversas criações de folar, o pensador Afonso Botelho (tinha ligações familiares a Torre Dona Chama) no conto O Folar Transmontano, acrescenta uma surreal, ou seja: após ter aturado uma viúva teimosa, teimosíssima, na inquirição relativa a recôndita receita, o inquirido escandalizou as circunstantes ao afirmar que a famosa e escondida receita de folar incluía carne humana.
Nas terras bragançanas o folar não é doce, nem recebe aromatizantes, leva isso sim a expressão das melhores carnes e enchidos da região. Os folares e as bolas de carnes de Bragança, são receitas emblemáticas de cariz local, além de enriquecerem ementas, salientam-se em refeições ligeiras e merendas.

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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