quinta-feira, 30 de julho de 2015

JAVALI OU PORCO-MONTÊS, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“D. Diogo Lopes era um infatigável Monteiro; neves da serra no Inverno, sóis dos estevais no Verão, e noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês...”
[A Dama Pé de Cabra. Alexandre Herculano]


A famosa narrativa da Dama demoníaca começa ilustrando a ocupação favorita dos nobres em tempos medievais – a caça grossa –, o porco-montês era uma das espécies mais requestadas.
Os monteiros e outros caçadores tinham especial predilecção pela caça do porco-montês também conhecido por bácoro e bácora monteses, javali, javardo e porco bravo, porque além do temível aspecto o animal oferecia tenaz resistência obrigando a cuidados redobrados a fim de a presa não se virar contra o caçador, o que às vezes sucedia.
O prestígio do porco-montês é de tal ordem que o Senhor Dom João de Portugal e dos Algarves e Senhor de Ceuta, lhe dedica a maior parte do Livro de Montaria, “escrito em pergaminho que se achou na livraria do Colégio da Companhia de Jesus de Monforte de Lemos” no ano de 1626.
Outros documentos da época medieval dizem-nos que as espécies de caça mais procuradas pela nobreza ibérica eram o veado e o javali cuja carne suscitava geral agrado.
A Idade-Média legou-nos volumoso corpo de informações relativamente ao comportamento da nobreza na ocupação do tempo quando não estava envolvida em conflitos bélicos. A caça desempenhava papel primordial, o javali proporcionava emoções violentas, a carne óptimos banquetes. Na Antiguidade Clássica acontecia o mesmo, no entanto, os aspectos simbólicos impregnavam a vida dos povos, daí os animais serem expressivos veículos das numerosas interpretações que foram surgindo ao longo dos milénios. O Abade de Baçal no Tomo XI das Memórias, no referente a agoiros e maus presságios anota: “Encontrar de manhã, ao sair de casa, um padre, frade donzela, lebre, serpente, lagarto, corvo, cabrito montês ou javali, é mau presságio, pelo contrário, será bom se o encontro for com um lobo, cigarra, cobra, sapo ou mulher mundana”. Mesmo o avesso à leitura das Memórias do Senhor Abade, se visitar o imponente Castelo de
Bragança terá, forçosamente, de contemplar a denominada porca da Vila, nem mais, nem menos, que a base onde assenta o pelourinho.
Mitos e lendas estão povoados de porcas, porcos e a adoração indo-europeia do javali é segundo Gelling & Davidson, “um dos mais antigos substitutos do deus sacrificial”. As oralidades lembram os poderes do javali mágico, cabeças embalsamadas deles mostram-se em estalagens, restaurantes e locandas, para além do exibicionismo, na qualidade de signos de sorte.
É ponto assente que a carne de javali tinha grande número de afeiçoados na Antiguidade, para os romanos quanto mais novo o javali melhor, dada a macieza da carne e também porque ainda não estava impregnada do forte gosto a animal selvagem. Por essa razão os estetas e poetas dedicavam-lhe fortes elogios comendo-o bem condimentado, não escapando as vísceras, pois num banquete descrito por Macróbio, Júlio César e as virgens vestais regalaram-se comendo rins do temido bicho montês.
De resto, pode-se afirmar que os romanos ficavam entusiasmados quando tinham oportunidade de se banquetearem com javali, a partir do Império elevou-se à condição de ser uma das carnes mais procuradas em Roma (Marcial 3, 50. 8), e das receitas que chegaram até nós, uma ensina a rechear-se a perna do javali – receita à moda de Terêncio – assim a apodou Apícius.
Se na Antiguidade o porco-montês possibilitava lautos banquetes, nos séculos subsequentes também, não sendo mais porque foi diminuindo o seu número, no entanto, nas coutadas reais existiam os suficientes para regalarem os convidados do rei.
Os receituários franceses e de algumas regiões espanholas mostram quão estimada era e é carne de javali, no entanto, quanto mais velho ele for, melhor cuidado há a ter na sua preparação, a de um jovem não precisa de ser marinada, a de um adulto requer adobo forte e cozedura prolongada, também neste nada despiciendo pormenor, os romanos recomendavam semelhante tratamento.
Os receituários oitocentistas propõem a fritura das costeletas, das partes mais tenras retirarem-se fatias finas (escalopes), as coxas e pernas serem estufadas, os filetes assados, e os melhores pedaços cozinhados em civet, isto é: a carne é cortada em pedaços e posta em vinho e alhos (vinha-d’alhos) por algum tempo, depois frita-se e, em seguida, é cozida em molho condimentado no qual entra o sangue do animal.
O Tratado General de Carnes, editado em Madrid no ano de 1832, ensina a distinguir a carne de porco doméstico da carne selvagem do javali, enumera as precauções que devem ser tomadas na sua confecção, lembra a época propícia à sua consumição, terminando a elogiar uma receita de preparação da cabeça, um “prato extraordinário” assegura o Tratado, explicando o modo de fazer: “aunque no delicado, es suntuoso y extraordinário.
Este manjar se condimenta pelando la cabeza en agua hirviendo, y bien raspada y lavada en agua clara, se la pone á cocer envuelta en un paño blanco cubierta de agua com vino blanco, vinagre, sal, canela, tomillo y laurel, y que cocida que sea, se saca del cocimiento, se quita ele pano, y se sierve sobre yerbas finas”.
No primeiro tratado culinário português enquanto tal, A Arte de Cozinha, 1680, de Domingos Rodrigues, o javali nomeia-se em duas receitas: javali de conserva e empadas de javali. O outro cozinheiro real, Lucas Rigaud, no também Arte de Cozinha, 1785, dedica-lhe três receitas: cabeça de porco-montês recheada, lombos de porco-montês por diferentes modos e presunto de porco-montês. As receitas em causa indicam, claramente, o saber desses cozinheiros em tratarem a carne do javardo de modo a torná-la macia e a não perder sucos gustativos.
Obviamente, as cozinheiras transmontanas aprenderam a preparar a carne do porco-montês baseando-se no saber adquirido no amanho da do porco doméstico, já que a dos javalis aparecia raramente, normalmente, em consequência de batidas destinadas a impedirem os contínuos estragos por eles provocados nas culturas, apanhados furtivamente, ou então resultado de caçadas com o fito de a apetitosa carne enobrecer ementas de banquetes e festins, assinalados em numerosas obras entre as quais nas Memórias do Abade de Baçal.
Mesmo nos dias de hoje a realização de montarias e caçadas confirmam tal asserção. Por seu turno os poetas continuam a tê-lo como modelo inspirador.

Em Viagens, Gil de Carvalho inclui o poema Javalis:

Lá em cima uma cama.

Perto da clareira, as folhas frouxas
Das constelações disparam na moita
A tua única certeza. Comeres o rio,
As mulheres das casas, a melodia
Do pisco na Cerdeira. Do fundo
As matracas magoam a manhã,
Que já o tavertino ataca. Que fazes aí,
No céu estrelado desde sempre preso,
À junça, à lama, ao milho fresco
À trança da Cassiopeia?
Das ramagens, por fim, a luz
De Orion, dá-te passagem.

Comeres Bragançanos e Transmontanos

Publicação da C.M.B.

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