terça-feira, 21 de janeiro de 2020

...quase poema...ou das cartas

Por: Fernando Calado
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

O correio chega sempre ao fim da tarde e já não ligamos à monotonia repetida das cartas que chegam…impostos para pagar…contas da água e da electricidade…o minguado extracto bancário que desgraçadamente minga e minga e minga em cada mês que passa neste saque vergonhoso aos parcos vencimentos…
…a caixa do correio é o lugar do desassossego e dos sustos…e em cada carta que chega ficamos mais pobres no anúncio de mais encargos…mais taxas e sobretaxas…tudo legal…ao abrigo do respeitável decreto-lei, da portaria, do despacho…coisas menores dum Estado para ricos que engordam descaradamente…em festa…com o sangue e o suor dos pobres que morrem paulatinamente às mãos dum capitalismo que perdeu o decoro e a vergonha.
…Maria da Fonte já se levanta da tumba morna e já se ouvem os clamores:

Eia avante, portugueses!

Eia avante, não temer!
Pela santa liberdade,
Pelejar até morrer!

…isto a propósito de todas as cartas do nosso desassossego!

Mas ontem, tu escreveste-me uma carta…como antigamente…em letra desenhada a caneta de tinta permanente…e o carteiro sorriu… e a tarde serenou… e a vida voltou a ser uma coisa muito bonita…e somos tão felizes!
…a carta vinha em meu nome…e trazia a tua direcção… e as roseiras milagrosamente floriram de novo na pressa de resistirem às agruras dum verão tórrido…as cegonhas voaram em voos largos na verdura do prado…o sapo do jardim…esse, não disse nada…é um sapo filósofo e pensador…a lareira acendeu-se…na promessa de Invernos amenos…e a esperança renasceu…como a água fresca da Ferradosa que nunca se cansa de alimentar as flores!...e o céu ficou mais azul na beleza das palavras da tua carta!
…espero que esta minha carta te vá encontrar bem!
Bom dia!
E a natureza toda sorriu…na inocência primitiva e urgente duma carta que nos diz uma coisa bonita, anunciando que os sonhos ainda resistem…à longa noite… do decreto-lei…da portaria e do despacho...
…felizmente a beleza das coisas simples da vida…o poema…resistem ao desassossego da Lei... ou talvez não… por decreto-lei… quem sabe…se um dia ainda lemos em todos os jornais…ouvimos em todas as televisões…que por Portaria: enquanto durar a o programa de assistência é proibido escrever cartas que alimentem a esperança… falar da banalidade das flores..dos rios…e das pontes…
O poema é uma arma…o poema é subversivo…
…Maria da Fonte não tarde…com uma carta na mão!


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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