sábado, 19 de outubro de 2019

Dos Caminhos Velhos à Auto-estrada: - Uma questão de tempo

Por: Fernando Calado
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Os caminhos velhos povoaram o imaginário da nossa infância porque no vagar da chegada e da partida o tempo não contava e permitia o relato de acontecimentos inauditos que tinham lugar por esses caminhos de Cristo.
Os almocreves eram os negociantes de longo curso que viajavam em grupos e se encomendavam à boa sorte e à protecção dos Santos para que os livrassem do ardil matreiro das quadrilhas de ladrões que se escondiam, pela calada da noite, no enlace de incauto viajante.
Os machos carregados de tudo o que se podia comprar e vender ainda podiam com uma saca de palha que garantia ao previdente almocreve a dormida regalada em palheiro enxuto, ou no cabanal das muitas ermidas que alvejam nos cumes dos montes ermos.
Os caminhos tinham segredos da passagem dos imponentes exércitos romanos, de fadas e feiticeiras que se encontravam à meia-noite nas encruzilhadas sinistras, de pontes cheias de mistérios e poderes miraculosos que aconteciam em noites esplendorosas de lua cheia. 
O pobre contador de contas barbaras e de notícias que aconteciam nas terras longínquas de Mirandela ou de Murça fazia-se ao caminho carregado de andrajos e quando se perdia no vagar do tempo e no dobrar da última curva, o caminho ganhava a força do desconhecido conduzindo aquele mendigo de Deus ao outros lugares cheios de magias e de coisas para contar.
Os tempos mudaram e os velhos almocreves trocaram as carroças e os machos por carrinhas que se faziam ao longe, percorrendo as magnificas estradas do nordeste transmontano e aproximando o Porto e Lisboa em pouco tempo. Os novos almocreves facilmente compreenderam que o que verdadeiramente valia dinheiro era o tempo.
Quem acreditava que se pudesse ir ao Porto em pouco mais de oito horas? Era o milagre duma nova era que acontecia.
E foi o tempo ganho que enriqueceu os novos almocreves que tinham comprado as carrinhas a prestações para serem pagas em cinco anos, mas passado meio ano estavam a pagar tudo a pronto, o que significa que ganharam muito tempo.
Depois e penosamente o IP4 devolveu-nos mais tempo, ficamos mais ricos e o Porto fica logo aí a duas horas e meia. 
Mas o tempo do IP4 é um tempo que se esgotou antes de tempo e os milhares de automobilistas que perderam a vida antes de tempo nesta sinistra via rápida, reclamou um novo tempo para o nordeste transmontano, um novo tempo em relação ao País e ao Mundo e por isso recentemente com a construção da Auto-Estrada, A4, os transmontanos ganharam mais tempo e ganharam a auto-estrada da justiça para além das palavras de circunstância.
Os ladrões do futuro serão os ladrões do tempo, por isso, sem regionalismos serôdios saibamos todos aproveitar bem este novo tempo e mais tempo, há tanto tempo sem tempo, do Nordeste Transmontano.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”. 

Sem comentários:

Enviar um comentário