quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Notícias da aldeia

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Houve um tempo em que somente o Sr. Padre tinha um rádio. Na altura não entendia porque o Sr. Padre, piedosamente, desligava o rádio quando o correspondente da Emissora Nacional, Costa Ferreira iniciava as sua crónicas de Luanda com um hino de Euclídes Ribeiro: “Angola...é nossa !... Angola...é nossa !... Angola é nossa gritarei. É carne é sangue da nossa grei. Sem hesitar p’ ra defender. É pelejar até vencer...”
O Sr. Padre também não gostava dos fados da Amália e só aumentava o volume do som do rádio quando se ouvia: “Povo que lavas no rio; Que talhas com o teu machado; As tábuas do meu caixão. Pode haver quem te defenda; Quem compre o teu chão sagrado; Mas a tua vida não.”
Aqui o Sr. Padre acenava com a cabeça que sim…outras vezes ficava muito sério… coisas de padres. Pensava eu.
No dia 13 de Maio, o Sr. Padre colocava o rádio na janela da sua casa para que todos ouvissem a voz do Papa. Atemorizados, todos se benziam no respeito pelo divino que chegava das terras do fim do mundo…não se sabe como!
Quando o Sr. Padre estava bem disposto, domingo à tarde, também deixava ouvir os fados à desgarrada, ou a radionovela onde a rapariga pobre, pela força da sua bondade e ajuda de Deus havia de casar, sempre, com o filho dos patrões ricos, poderosos e maus.
- Deus queira que a rapariga do rádio tenha sorte…que os sogros não são grande fazenda… Dizia a Tia Angélica enquanto acendia a lâmpada do Santíssimo. Depois o Sr. Padre desligava o rádio pois já não lhe interessavam as façanhas dos nossos exércitos aquém e além-mar em África!
Então toda aldeia regressava a casa. Acendíamos o lume. Comíamos o caldo…e cismávamos com as coisas que o Padre sabia…e com as coisas que se ouviam na rádio… deve estar para acontecer o fim do Mundo…diziam os mais sábios do povoado. Nesse tempo eramos todos muito pobres! Voltamos a ser!
Algumas vezes, pela noite dentro, fechado no seu quarto, o Padre ligava o rádio que se ouvia assobiar e uma voz do fim do mundo dizia: - Aqui Rádio Argel! A Voz da Liberdade – Um programa de Manuel Alegre.
O padre nunca deixava ninguém ouvir essa Voz da Liberdade…só ele… com o seu rádio que cada vez assobiava mais e mais…
… O padre devia estar a ouvir e a falar com Deus! 
…hoje penso que sim!


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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