terça-feira, 26 de julho de 2016

População da Toupeira-de-Água, no Nordeste Transmontano, diminuiu drasticamente nas últimas duas décadas

Mamífero subaquático é ainda uma incógnita para a comunidade científica, despertando enorme curiosidade entre os investigadores.
É sempre assim em todas as histórias, há os bons e os maus e, por vezes, contrariando este maniqueísmo natural, os assim-assim, que são aqueles a quem não reconhecemos estatuto e deixamos fora da equação moral. Para sermos claros, as boazinhas deste conto são as Toupeiras-de-Água, e são-no verdadeiramente, contribuem para o equilíbrio do ecossistema nas bacias dos rios Sabor, Tua e Fervença e, para além disso, a sua figura de focinho cilíndrico e cabeça desmesurada, desproporcionada em relação ao resto do corpo, como se lhe não pertencesse, dava um filme animado fantástico da Pixar, ainda andasse por aí o geniozinho de Jobs ou a National Geographique se compadecesse da nossa interioridade natural. Já não nos bastava ser o “interior esquecido e ostracizado” em termos de políticas económicas, sociais e culturais. Um dia destes ainda engendram uma unidade de missão para o ambiente, com anúncios de circunstância de políticos que chegam cá vindos de longe, entre dois afazeres mais importantes, e que quando olhamos outa vez já se foram embora, quase sem tempo de lhes apanharmos as graças. Mas voltemos para aqui, para as ribeiras que dão corpo aos rios, onde, falando de graças, a Galemys Pyrenaicus, nome científico da Toupeira-de-Água, encontrou o seu habitat natural e onde é possível avistar-se, sobretudo, de noite, quando ironicamente se “expõe”. As comas não são para o estilo, esta parente da toupeira que esburaca nas hortas é um animal subaquático, pouco dada a exibições espectaculares, tímida como só antigamente as senhoras nos romances, padecendo de ser uma espécie interior e, por isso, ainda pouco conhecida e estudada. Fora espécie de um desses gigantes que vêm de Espanha e desaguam no Porto ou em Lisboa e teria um nicho no Oceanário, em pleno parque das nações, para turista de olhos em bico ver. Sobre as dificuldades de observação desta espécie, de hábitos mais noctívagos, sabe Lorenzo Quaglietta, cientista do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBio), com ligação à Universidade do Porto, que dirigiu uma equipa com mais dois investigadores, entre eles, Diego Gallego Garcia, como assistente de campo (Ver Caixa).

O plano traçado era simples e passava por montar as armadilhas durante o dia, ao longo do curso da água, entre Rio de Honor, França e Portelo, e fazer “directas” durante a noite, esperando ter sorte e apanhar alguns espécimenes destes mamíferos aquáticos, que tanta curiosidade provoca na comunidade científica em geral. “Temos tido muitas pessoas, desde investigadores, a estagiários, não directamente ligados a este trabalho de campo, que têm vindo apenas para ver esta espécie. Toda a gente está muito curiosa por ver este animal, que é muito, muito estranho”, começa por explicar o investigador italiano, a residir e trabalhar em Portugal há alguns anos.

Trata-se de um trabalho extenuante que exige uma enorme capacidade física e mental, pois as horas de sono são muito reduzidas. “Ao longo dos últimos dois anos viemos fazer prospecção, para detecção de indícios de presença da espécie, que é um trabalho muito doloroso, cansativo, muitas vezes, ajoelhados durante muito tempo seguido nos rios, apenas com o objectivo de saber se a espécie ocorria e aonde”, continuou.

Refazer os passos do ICN

Esta não foi a primeira vez que um estudo mais exaustivo foi feito sobre esta espécie animal. “Foi um bocadinho revisitar os mesmos sítios onde, há 20 anos atrás, técnicos do Instituto de Conservação e Natureza [nd. Actual Instituto de Conservação da Natureza e Florestas] haviam feito a mesma prospecção. Até hoje, era a única que existia a nível nacional. Queríamos saber o que mudou nestes anos todos”.

Lorenzo está a falar connosco no último dia do trabalho de campo. São 09h30 e ainda não foi à cama. Acompanhamos as suas rotinas – e da sua equipa - ao longo da última semana. O grupo usou a pousada da Juventude local para repor energias, dormir um par de horas por dia e fazer uma ou outra refeição quente. Na última noite – de quinta para sexta-feira passada – não conseguiram capturar qualquer toupeira mas nenhuma hora dedicada a este esforço é considerada vã. Até porque “vale a pena mencionar o facto de que já revisitámos grande parte desses sítios por onde andou o ICN, em toda a bacia do rio Sabor e do rio Tua e, em ambas as bacias, notámos uma diminuição drástica do número de sítios ocupados. Há 20 anos atrás a espécie ocorria em mais sítios, hoje, é mais rara e muito concentrada nas cabeceiras dos rios”, referiu.

Poluição, mudanças climáticas e barragem do Baixo Sabor

As causas para percebermos as razões desta diminuição estão ainda por apurar. “Temos que continuar a estudar. Temos hipóteses mas nada de conclusivo”. E que hipóteses são essas? “Uma delas é que o animal é relativamente sensível a vários factores, como a poluição; não me surpreenderia que se fizessem sentir também já alguns efeitos das mudanças climáticas, porque é um animal que ocupa zonas mais frescas, mais atlântico que mediterrânico, e que precisa de água corrente”. Outra das possibilidades é de ordem natural: “muitas vezes somos tentados a apontar causas humanas, o que é verdade na maior parte das vezes (ri). Mas também é verdade que a natureza é muito complexa e colocamos também a hipótese de a lontra, que também é uma espécie autóctone, ter um efeito de predação sobre a Toupeira-de-água, não directa, pois não é muito habitual a lontra consumir a Toupeira-de-água. Mas que aconteça um fenómeno que em ciência se chama «risco de predação», ou seja, o facto de o predador estar na mesma área pode influenciar o comportamento e fazer com que a toupeira se afaste. Outro predador, este já não autóctone, portanto, mesmo invasivo é o «Visão americano», que está a espalhar-se em Portugal e Espanha. É outro predador potencial da toupeira”.

Questionamos Lorenzo Quaglietta acerca dos efeitos potencialmente nocivos para a fauna local da construção de barragens e açudes na região. A resposta sai com franqueza científica: “um dos nossos objectivos aqui é também avaliar os efeitos da construção da barragem do baixo sabor. É sempre muito difícil avaliar os impactos na fauna, pois muitas vezes o que acontece é que não há comparação possível, pois os estudos começam em fases já avançadas dos açudes e não há estudos anteriores. É sempre difícil depois fazer a comparação com o ‘antes’ da barragem. Mas no campo das especulações é possível que tenha efeitos. Agora, a verdade é que também esta é uma espécie da qual sabemos muito pouco, mas do que se sabe, tudo aponta para que a barragem não seja um bom habitat para ela”. O investigador destacou a importância para o seu trabalho actual do estudo realizado por Marisa Quaresma (uma cientista local, que vive na aldeia de França), Ana Isabel Queirós e Henrique Carvalho, entre outros, técnicos do ICN, que fizeram um primeiro levantamento exaustivo e minucioso nos anos 90’ e início dos anos 2000 sobre a Toupeira-de-água.

Segue-se um plano intensivo de capturas, para colectar o maior numero possível de amostras, como tecido, pelo, saliva e sangue para ulteriores análises genéticas. “Estamos a tentar perceber se existe uma estrutura genética ou se há uma variabilidade ao nível das populações das toupeiras. Estes são os primeiros objectivos a curto e médio prazo”, confidenciou.

Lorenzo e a sua equipa tencionam voltar brevemente para dar continuidade a este estudo, que ainda está numa fase inicial. “Eu ocupo-me mais do trabalho de campo, recolha e tratamento de dados e a parte de laboratório é feita no CIBIO, mais propriamente, no núcleo de Vairão, perto do Porto, onde se fazem as análises genéticas, com ótimas condições logísticas”. Para ajudar a desvendar os segredos que ainda subsistem acerca da Toupeira-de-água, a próxima etapa desta investigação poderá ser decisiva, como explica Lorenzo Quaglietta: “Vamos voltar, porque ficaram ainda alguns pontos para fazer. Uma das coisas que pretendemos fazer é radiotelemetria da Toupeira-de-água. A radiotelemetria é uma técnica de campo que consiste em apanhar o animal, colocar-lhe um pequeno radiotransmissor e, depois, com um radioreceptor e uma antena seguir os movimentos dos animais, para tentar saber mais sobre os seus hábitos, nomeadamente, quando se movem, quais os ritmos de actividade, se são mais activos de dia ou de noite e em que períodos, qual a sua área vital, etc. Este será um objectivo talvez para cumprir para o ano”. 

Caixa 1

Lorenzo Quaglietta, de nacionalidade italiana, 38 anos, é licenciado em Ciências Naturais pela Universidade Federico II, em Nápoles. Doutorado em Biologia Animal pela Universidade La Sapienza, em Roma, com a tese “Ecologia e Comportamento da Lontra”, passou três anos e meio em Évora a preparar o doutoramento. Depois de um curto período fora, radicou-se em Lisboa há três anos, onde exerce, desde então, a sua actividade no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO), na equipa do investigador Pedro Beja (Cátedra EDP), que lidera o projecto “Long Term Ecological Research and Monitoring”. No âmbito deste projecto mais alargado, Lorenzo dedica-se à parte do estudo dos mamíferos aquáticos e, em particular, da toupeira-de-água.

Caixa 2

A Toupeira-de-Água é ainda um mistério para a comunidade científica e os estudos prometem prosseguir nos próximos anos. Tem o nome científico de Galemys Pyrenaicus e é oriunda da cordilheira dos Pirenéus, como o próprio nome indica. Trata-se de um mamífero subaquático, de pelo muito denso para resistir às baixas temperaturas da água no inverno, da família das toupeiras de terra, mais comuns. O investigador Lorenzo Quaglietta faz aqui o retrato desta espécie com características morfológicas muito especiais: “a Toupeira-de-água é uma criatura única, muito particular. O corpo tem cerca de 10 centímetros de comprimento e pesa entre 50 e 70 gramas, com um focinho que se assemelha a uma tromba de elefante. Parece que é uma parte de um outro animal que foi ali colada. Quase não tem olhos e possui uma cauda muito mais comprida - e com escamas - que a toupeira normal, parece uma cauda de rato. E realmente aquele focinho, que parece colado de outra espécie!”. 

Hélder Pereira
in:jornalnordeste.com

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