sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Soldado Milhões

"Preparou-se o “Malha-vacas” para fugir… Coitadito, pouco correu. Correu para aí uns dez metros. Veio uma granada, bateu nele, esmigalhou-o. Eu nem vi nada dele. Mesmo na minha frente, mas eu não vi nada dele. Eu corri sempre…"
A lenha crepitava no lume aceso daquele serão transmontano. O silêncio era interrompido pelos bocejos dos mais velhos e pelas brincadeiras do gato de trazer lá por casa.
- Avô, conta-me histórias da tua guerra.
O velho Milhões dormitava. Acordando, lamentava-se da chuva que não deixava fazer nada no campo.
- Já parava esta chuva, atrasa-se-me tudo…
O neto insistia:
- Conta, conta daquela vez que tu, sozinho, lutaste com mil alemães…
Aníbal Augusto Milhais dificilmente falava da guerra. Dizia que aquele tempo foi um tempo de tristeza e o que lhe valeu foi a fé que sempre teve na Nossa Senhora do Vale de Veigas. Quando alguém puxava o assunto da guerra, ele mudava de conversa. Acedendo, lamentava muito a morte do camarada “ Malha-vacas” que viu morrer ao seu lado, despedaçado por um morteiro:
- No dia 8, saí eu das linhas e sonhei com a Santa da minha terra. Disse aos meus amigos que estava contente com o sonho que tivera. Sonhara com a Santa que me sorrira muito. Estava eu a tomar o café quando rebentou o combate. Lá fomos para a frente. Pus a metralhadora às costas e fiz-me ao caminho. Só o “Malha-vacas” me acompanhou. Disse-lhe que o nosso Batalhão já tinha ido todo embora. Que ele também tinha de ir. Em Lacouture, escondemo-nos atrás de uma casa que estava a arder. Estava tudo a arder. Preparou-se o “Malha-vacas” para fugir… Coitadito, pouco correu. Correu para aí uns dez metros. Veio uma granada, bateu nele, esmigalhou-o. Eu nem vi nada dele. Mesmo na minha frente, mas eu não vi nada dele. Eu corri sempre…
As memórias do cenário de guerra embaciavam-lhe os olhos, rasos de lágrimas, mantinha no entanto a lucidez necessária para relatar como tudo começou:
- Os alemães progrediam rapidamente. Os primeiros combates do Batalhão de Infantaria 15, ocorreram na zona de Haute Maison. Perante a pressão alemã, um misto de tropas portuguesas e escocesas, retirou para La Fosse. Eu e o “Malha-vacas” ficamos para trás para dar apoio à retirada dos portugueses. Fiquei sozinho depois da morte do meu camarada…
Aníbal fixava os olhos no lume que ardia lentamente e pausava a memória. Triste.
- E depois avô? O que aconteceu?
- Entrei para um abrigo. Não vi ninguém. Só via fogo em roda de mim. Caíram granadas em cima do abrigo, voavam por todo o lado. Mais tarde, os alemães começaram então a avançar no campo de Lacouture. Vi esse campo coberto de gente. Os da fila da frente, vinham vestidos à portuguesa. Pouco depois, percebi que eram alemães que tinham tirado as fardas aos nossos mortos e prisioneiros. Avançavam em cima de motociclos, com capacetes altos. Foi então que vi que eram alemães. Abri fogo e essa invasão caiu toda. Passado algum tempo veio outra invasão. Tombou também. Uma metralhadora faz muito fogo. A última invasão já não era tamanha mas eu… “cortei-a” também. Não tornei a ver alemães. 
Do alto de Lacouture, o praça Milhais, sozinho, metralhou três invasões de soldados alemães. 
Apesar dos feitos heróicos, sofrido e quase ausente, continuava:
- No regresso, em direção a Saint Venant, “cortei” mais uns tantos. Punham-se de pé e logo caiam. Libertei soldados portugueses e escoceses, aflitos, cercados pelos alemães…
Naquele serão, não disse mais nada. Levantou-se e foi-se à cama. Já deitado, ouviu os morteiros e as granadas rebentar, viu corpos despedaçados, fogos, trincheiras e morte. Muita morte.
No escano, em frente à lareira, um dos filhos completava a história. Faltava dizer que antes de reencontrar os camaradas do Corpo Expedicionário Português, o avô, o soldado Milhais, ainda teve tempo de salvar uma criança abandonada ao seu destino e um oficial escocês que lutava contra a morte, prestes a afogar-se num pântano. Foi esse oficial que relatou as façanhas do valente soldado, escrevendo uma longa carta que deu origem ao relatório pormenorizado sobre as suas ações na batalha de La Lys, no dia 9 de Abril de 1918. Pelos seus atos, recebeu a Ordem Militar de Torre e Espada, Lealdade e Mérito. Foi depois de receber a condecoração que o seu nome mudou de Milhais para Milhões. No dia da condecoração, perante quinze mil soldados portugueses, o Marechal Gomes da Costa bateu-lhe a continência. À noite, ao jantar, Ferreira do Amaral, seu comandante no BI 15, questionou-o acerca do seu verdadeiro nome, respondeu:
- Aníbal Augusto Milhais.
- És Milhais, mas vales Milhões!
E Milhões ficou para o que resta de História.




Por: Rui Machado


NOTA: Ficção baseada em factos reais retirados do testemunho na primeira pessoa do Soldado Milhões, em gravação áudio.
A madrugada de 9 de Abril de 1918, nas trincheiras da Grande Guerra, no Norte de França, marcou um dos maiores desastres da história militar portuguesa. Atacada por forças alemãs muito superiores em número, a 2.ª divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP), com 20 000 homens, foi facilmente derrotada. O desastre ficou, porém, marcado por uma história heróica: o soldado transmontano Aníbal Augusto Milhais, natural do Concelho de Murça, sozinho com a sua metralhadora, continuou a disparar, travando o avanço alemão, passando à História como o “ Soldado Milhões”.

in Almanaque Republicano, arepublicano.blogspot.pt

Sem comentários:

Enviar um comentário