sexta-feira, 17 de maio de 2019

Entrevista ao Escritor Transmontano Fernando Calado

O Memórias e Outras Coisas… entrevistou o Escritor e Poeta Transmontano, Fernando Calado.

Memórias e Outras Coisas (MOC): Um homem já nasce escritor, ou são as circunstâncias da vida que o encaminham para a escrita? Donde surgiu a motivação para ser escritor? Alguém o influenciou?
Fernando Calado (FC): O escritor não nasce, faz-se, na maior parte das vezes fruto da circunstância e do acaso. Eu nasci num tempo em que não existia televisão e a rádio surgia timidamente. A única forma de ter acesso à novidade, ao conhecimento era a leitura. Eu, pessoalmente, ganhei o “vício” da leitura, principalmente dos grandes autores portugueses. Assim nasceu o gosto pela escrita e também a aprendizagem para escrever em bom português.

MOC: Os temas dos seus livros são, invariavelmente, inspirados na nossa terra. Por quê?
FC: Porque é fácil ser escritor na nossa terra, porque só é preciso olhar e permanecer  bem perto da imensidão da nossa paisagem austera, rude, mas plena de cambiantes de beleza, só é necessário estar atento nesta observação antropológica às mulheres e aos homens transmontanos que se gastam em jeiras infindas, arrecadam trigo, namoraram o sol e são verdadeiramente sábios para além da sabedoria dos livros.
É por isso que eu só sei escrever no Nordeste, em Lisboa, no Porto, ou nos confins do Planeta, falta-me o ar, o cheiro a alfazema, a rosmaninho e a esteva brava, sufoco, pois só o meu provincianismo consentido me inspira e me devolve as palavras da nossa ruralidade, da nossa beleza, do imaginário da nossa aldeia, porque nós orgulhosamente ainda temos uma aldeia.
Estou sempre de regresso a casa onde é possível escrever como quem come pão centeio, bebe do vinho da pipa e embebeda-se com a água do ribeiro a regurgitar de peixes avaros dos mistérios dos poços fundos.
Então tudo é fácil, o grande livro do Nordeste está aberto e só é preciso copiar a cópia cem vezes repetida na escola da vida.

MOC: Para quando o seu novo livro que, tanto quanto sabemos, será novamente telúrico e dedicado ao nosso mundo rural?
FC: O próximo livro que vem na sequência da trilogia sobre Bragança e o seu imaginário saíra no próximo mês de maio. Os dois romances anteriores: “O Milagre de Bragança” e “Quando as mães saíram à rua” incidem o seu enredo e a construção temática na cidade de Bragança, por isso, este terceiro livro que fecha o ciclo, será sobre as nossas aldeias, a sua cultura, a sua gastronomia, o seu saber e saber fazer, dando grande enfoque ao drama da desertificação do meio rural transmontano. Este livro será sobretudo o regresso a casa, à infância, à guerra colonial, à emigração e também à grande diáspora que leva os habitantes das nossas aldeias para o mundo. É um livro de memórias e de chamadas de atenção. 

MOC: Algum dos seus livros lhe deu um prazer especial em escrever e qual pensa que foi o livro que, até ao momento, marcou mais a sua obra literária?
FC: O livro que me deu mais prazer escrever foi sem dúvida o pequeno livro de poesia: “Verdes de sangue”, tinha pouco mais de 20 anos e timidamente insurgia-me contra a ditadura e a guerra colonial. Mas o romance “O Milagre de Bragança” é sem dúvida a obra em que se revela já a minha fase adulta. Como digo na sinopse deste livro: O Milagre de Bragança. É um romance, onde a História e a ficção se conjugam numa narrativa de judeus, de maçons, de teares da seda, do Colégio dos Jesuítas, do Liceu de Bragança, da velha Academia, do 1º de dezembro, de quartéis, de estudantes e militares, de amores, e traições, de chegadas e partidas, de mulheres que resistem, de homens justos, de homens do mundo, almocreves e pedintes. E o Brasil tão perto e desejado.
 Um romance, uma longa história, uma paixão vivida entre duas guerras mundiais, a guerra civil de Espanha, a guerra colonial e o 25 de Abril, no cenário duma cidade misteriosa, às vezes sombria, outras vezes cheia de luz, onde o sagrado e o profano convivem numa harmonia perene e secular. Uma cidade que no último século viveu o espanto da luz elétrica e o fascínio da chegada do comboio e como a Fénix renasce das cinzas.
Este livro deu-me particular prazer em escrever, porque permite revisitar Bragança onde crescemos e vivemos. Permite revisitar uma Bragança que já não existe.

MOC: Tem referências para a escrita ou é pura e simplesmente inspiração momentânea?
FC: Como se costuma dizer, no trabalho da escrita são “dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração” Só começo a escrever um livro quando consegui arquitetar, mentalmente, o que eu considero uma boa história. Depois passo para a fase da investigação. De seguida e com a disciplina de escrever todos os dias, passo, paulatinamente, para a construção do livro.

MOC: O que mais gosta na sua escrita?
FC: Gosto principalmente das mulheres e dos homens que ganham vida, das suas alegrias e tristezas, das suas grandezas e misérias, da sua humanidade, das suas emoções, principalmente, quando nos ajudam a acreditar que a vida é uma coisa muito bonita e a felicidade é possível.

MOC: O ser escritor, afetou de algum modo a sua vida?
FC: Sem dúvida a escrita deu-me outra compreensão do mundo e da humanidade. O ato de escrever leva-nos também à reflexão filosófica. As minhas personagens ensinaram-me a ser mais tolerante e a compreender a natureza humana. Por outro lado, os meus livros chegam a muitas pessoas que se tornam na minha família literária e me incentivam com a generosidade dos seus comentários a que continue a escrever.

MOC: Quanto tempo demora a escrever um livro?
FC: Tenho oito livros editados. Há livros que me demoraram alguns anos a serem concluídos. Os últimos livros, porque tenho uma grande disciplina na obrigatoriedade de escrever todos os dias, demoram cerca de um ano a estarem prontos para irem para a editora.

MOC: É possível, em Portugal, viver apenas da escrita?
FC: Há autores que vivem da escrita em Portugal. Autores que se impõem pela sua qualidade, ou pela força da televisão, ou da máquina poderosa de algumas editoras. Eu ainda não atingi esse patamar, embora, felizmente, os meus livros têm leitores certos que vêm aumentando em cada novo livro que é editado.
A imprensa local tem feito um bom trabalho na divulgação da minha obra, bem como este blogue “Memórias e outras coisas” que com frequência me dedica um espaço importante, levando ao mundo a notícia do que escrevo, bem como a republicação de muitos textos postados no Facebook, ou publicados na imprensa.
Reconhecido agradeço ao meu amigo de sempre Henrique Martins, dinamizador do referido blogue, pela atenção que me tem dado, há tantos anos. Aproveito para o felicitar pela perseverança na manutenção deste espaço que tanto têm contribuído para a divulgação da cultura transmontana e das suas gentes.

HM - Eu é que agradeço a tua pronta disponibilidade em me concederes esta entrevista.
Um grande abraço de profunda amizade.

30 de Janeiro de 2017
Henrique Martins

4 comentários:

  1. Gostei imensamente de conhece-lo, Sr. Escritor.
    Sou brasu

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  2. Sou brasuca e escritor amador.
    Pesquiso há muitos anos o dialeto caipira; equivalente brasileiro do Mirandes de Bragança. Pena que até hoje não tenha tido contato com o dicionário do Amadeu Ferreira. Eu gostaria de escrever um texto em Mirandes; porém sem conhecer no mínimo 800 verbetes e impossível.
    Prazer em conhecer!

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  3. ...Olá viva! Para falar com o Amadeu Ferreira o homem do mirandês, arranjo lhe contacto, ...

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    1. Será que tem contacto com o mundo dos mortos?
      Amadeu Ferreira, faleceu a 1 de março de 2015.

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