terça-feira, 20 de junho de 2017

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos ISABEL LOPES (C. 1503 – DEPOIS DE 1585)

Em 1571 Vasco e Isabel casaram uma das filhas (Violante Álvares) com Gaspar da Rosa, um homem da nobreza de V. Flor e cristão-velho. Nisto se empenhou o pai da noiva, já que a mãe e toda a família materna era contrária a este casamento. No contrato se estipulou que Vasco Fernandes cedia ao genro o seu ofício de tabelião e que, à morte do cabeça de casal, a sua casa e os seus bens passariam para o mesmo genro. Este, por seu turno, assumia o compromisso de sustentar os sogros, no caso de eles caírem em situação de necessidade.
Efetivamente, 3 anos depois, Vasco Fernandes faleceu e a sua casa e bens passaram para Gaspar da Rosa. A viúva é que não foi viver para casa de quem tinha obrigação de a sustentar, antes preferiu ficar a viver com a filha Maria Álvares, casada com Gaspar Vaz.
No mesmo ano do referido casamento, dois jovens canonistas ascendiam ao posto de inquisidores: um para o tribunal de Évora, chamado Jerónimo de Sousa e outro para o tribunal de Coimbra, Diogo de Sousa, de seu nome.
Enquanto o segundo se afirmava em Coimbra, iniciando uma brilhante carreira que o levaria a bispo de Miranda e ao conselho geral da inquisição, o segundo abandonou a inquisição de Évora e veio para Trás-os-Montes desempenhar o ofício de abade de Vila Flor. Estranho? Muito estranho, mesmo! E mais se estranhará se dissermos que ele trazia uma provisão do “inquisidor apostólico da cidade de Coimbra”, Diogo de Sousa, dando-lhe poderes para “tomar denunciações tocantes ao santo ofício”.
Resta dizer que os dois jovens canonistas eram homens de absoluta confiança do inquisidor mor, cardeal D. Henrique. E naquele tempo a inquisição afirmava o seu poder acima dos bispos que ficaram impedidos de absolver e julgar os pecados contra a fé. Acresce que o arcebispo de Braga era Frei Bartolomeu dos Mártires, o mais vigoroso adversário do cardeal nesta matéria. Será que a nomeação daqueles “testas de ferro” foi feita para “entalar” o arcebispo de Braga?
Chegado a Vila Flor, o “inquisidor - abade” procurou alojamento, naturalmente em casa de grande nobreza, dignidade e conforto. Imagine-se: o tabelião Gaspar da Rosa cedeu-lhe a sua própria moradia que herdara do sogro, a qual desocupou para ele!
Temos então o inquisidor “disfarçado” de abade a morar na casa que fora de Vasco Fernandes e Isabel Lopes. Imagine-se o turbilhão de raiva e desconsolo que iria na alma daquela mulher de 74 anos! E também na de seus familiares, nomeadamente o seu sobrinho e procurador, Dr. André Nunes. 
Imaginamos uma relação estreita entre Gaspar da Rosa e Jerónimo de Sousa. E este não perderia a oportunidade de “sacar” daquele informações tocantes ao santo ofício. 
No dia 17 de Outubro de 1576 o abade foi chamado a casa de Gaspar da Rosa para confessar sua mulher que estava doente. Doente ou pressionada pelo marido, facto é que Violante Álvares disse que antes de casar ela seguia a religião judaica, ensinada por sua mãe e por sua irmã Maria Álvares. 
O confessor fez as perguntas que entendeu e por ser tarde, foi para casa e escreveu por sua mão o que Violante confessara, sobre a mãe, a irmã e outras mais pessoas.
Era o início de uma onda de processos. Na rede lançada pelo inquisidor-abade iriam ser apanhadas muitas pessoas, para além de Isabel Lopes, a nossa biografada.
Mas para as coisas serem direitas importava pelo menos uma segunda testemunha, a qual estava mesmo ali à mão: Gaspar da Rosa, o qual foi ouvido “nas casas onde pousa o senhor licenciado Jerónimo de Sousa”, servindo de escrivão o cura João Martins.
Claro que, por mais segredo e discrição que Jerónimo de Sousa impusesse, as coisas acabaram por transpirar e as pressões sobre Violante e outras testemunhas para se desdizerem acumulavam-se. Tal como Gaspar da Rosa procurava testemunhas que confirmassem as suas denúncias. 
No meio deste turbilhão de intrigas e diz-que-não-diz, o próprio inquisidor Jerónimo de Sousa se sentia pressionado e escrevia para Coimbra, em 6.1.577, dizendo:
- Ficou tanto olho em mim depois que falei com aquela mulher que não dou volta que me não notem e por isso busquei tempo para não ser sentido; de outra maneira todos se passarão de alevanto (…) avise VM ao oficial que cá vier que se não venha a minha casa porque trazem nisso tento e haverá reboliço, que nunca me saem de casa todos os dias, que por isso fui tirar a filha de sua casa e de noite, porque a trazem atrelada, que nunca a deixam. (1)
Crescendo os boatos e os medos, em Março seguinte, mãe e filha abandonaram Vila Flor e foram viver para a raia da Galiza, levadas por Gaspar Vaz, genro de Isabel Lopes e marido de Maria Álvares. (2)
Entretanto o arcebispo Bartolomeu dos Mártires empreendeu uma visitação a Vila Flor, como costumava fazer cada dois anos. E era ocasião de “apertá-lo” – terá pensado Jerónimo de Sousa. E assim, perante o arcebispo apareceram Gaspar da Rosa e Violante Álvares a repetir as denúncias de judaísmo contra Isabel e as mais pessoas, fazendo questão de vincar que “já neste caso testemunhara diante do abade desta igreja Jerónimo de Sousa, por provisão que disse ter dos inquisidores de Coimbra”.
Fantástico: afinal o abade de Vila Flor não era subordinado do arcebispo de Braga e não lhe havia jurado obediência?!
Por Vila Flor a visita do bondoso arcebispo terá posto alguma calmaria, de modo que Isabel Lopes regressou à terra, ficando-se a filha e o genro pela raia da Galiza. E o inquisidor Diogo de Sousa terá ficado perplexo quando Manuel Fernandes, (3) um filho de Isabel se apresentou em Coimbra dizendo que sua irmã fizera um juramento falso contra a mãe e disso fora já confessar-se a dois padres. Explicou que a irmã e o cunhado fizeram tais denúncias para obrigar sua mãe a entregar-lhe tudo: uma horta, uma vinha, uma courela na Vilariça… para além da casa onde morava o abade. E apresentou como testemunhas de suas afirmações 3 das pessoas de maior nobreza da terra: Domingos Sil, Gaspar de Seixas e Nicolau de Lobão.
Delicada parecia a posição de Gaspar da Rosa e também a de Jerónimo de Sousa, que então escrevia a Diogo de Sousa pedindo a prisão das mulheres. Veja-se o tom patético da carta:
- Há muitos dias que negócio algum me enleou tanto como este de Maria Álvares e sua mãe (…) V. M. pese tudo muito e veja o que lhe parece porque eu ao presente sou suspeito que pouso em umas casas suas, de que ele se tirou para mas dar.
Facto é que Diogo de Sousa decidiu chamar a Coimbra Gaspar da Rosa e Violante Álvares para ele próprio proceder ao interrogatório, o que aconteceu em 29.10.1577. E mandou Onofre de Figueiredo a Torre de Moncorvo buscar Isabel Lopes que entretanto fora mandada prender pelo vigário geral de Moncorvo.
Por mais de 5 anos sofreu Isabel as agruras das celas da inquisição de Coimbra, acabando condenada em cárcere e hábito no auto da fé de 23.1.1583. Dela se queriam livrar os inquisidores, que escreveram:
- É muito velha, mais de 80 anos e muito doente e há muitos anos que está entrevada e faz muita despesa a esta casa e quase sempre foi alimentada à custa dela e dá muito trabalho tê-la no cárcere sem fruto algum, nem esperança dele.
Pediam os inquisidores uma fiança de mil cruzados e o pagamento de 70 mil réis para a deixarem sair. Quem tinha obrigação de pagar era a filha e o genro que tudo herdaram dela e do marido – diziam os outros filhos. E depois de uma primeira petição feita pela filha, Jerónima Fernandes (4) para lhe entregarem a mãe, os irmãos lá conseguiram juntar 40 mil réis que o filho Baltasar Álvares, morador em Torre de Moncorvo, na Rua Nova foi levar a Coimbra e entregar-se da mãe, no dia 16 de Agosto de 1585. A demasia, acrescentavam, devia ser paga por Gaspar da Rosa.

Notas e Bibliografia:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº 536, de Isabel Lopes, a qual passou 8 anos na cadeia, saindo aos 82 anos.
2-IDEM, pº 8765-C, de Maria Álvares, que não foi presa por estar ausente.
3-IDEM, pº 9129-C, de Manuel Fernandes, que viria a ser preso em 1579.
4-IDEM, pº 8775-C, de Jerónima Fernandes, moradora em Torre de Moncorvo, casada com João Rodrigues, o patriarca da família dos Isidros, a qual seria presa em 1583.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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