terça-feira, 14 de novembro de 2017

Nós, Transmontanos, Sefarditas e Marranos ANTÓNIO FERNANDES VIDEIRA (V. FLOR, 1566 – 1624 RELAXADO)

Em dois processos que lhe instauraram se diz que ele era natural de Vila Flor, mas ele próprio dizia ter nascido no Porto, pelo ano de 1566. Batizado com o nome de António Fernandes Videira, era filho de Manuel Fernandes Videira, de Torre de Moncorvo e de Beatriz Cardoso (Baeça), do Porto. (1) Nesta cidade passou uns 6 ou 7 anos de sua juventude, porventura iniciando-se na vida de tratante. Casou com Filipa Rodrigues, filha de Lançarote Rodrigues.
Em outubro de 1602, foi preso pela inquisição de Coimbra, em cujas celas passou 29 meses. Saiu depois de abjurar de seus erros, beneficiando do perdão geral de 1605. (2) Por Vila Flor terá continuado até ao fim da década, fazendo viagens de negócios por Espanha, nomeadamente por Madrid, Granada, Pego e Baeza. Daquelas partes trazia sedas, sobretudo, as quais vendia no reino. Veja-se um pequeno exemplo:
- Morando em Vila Flor, no ano de 1606, veio a Aveiro com uma carga de tafetás, veludos e outras sedas, as quais havia despachado na alfândega de Bragança e a meteu na dita alfândega da vila de Aveiro…
Mas a terra trasmontana seria já demasiado estreita para as ambições comerciais de António Videira e, por 1611, o casal estabeleceu morada na cidade do Porto, ao Padrão de Belmonte. O tratante de Vila Flor afirmava-se já como um grande mercador e logo tomaria também o título de rendeiro. E não eram umas quaisquer rendas que ele arrematava, mas de grossos cabedais, daquelas que exigiam mais de 4 contos de réis à cabeça, como eram as rendas da Chancelaria e as do peixe.
Também os horizontes, os parceiros e os produtos comerciais mudaram, acrescentando rotas marítimas com ligação ao Brasil, de onde recebia caixas de açúcares que depois vendia para Castela e países do Norte da Europa. Resumindo a sua atividade, uma testemunha diria que António Videira “cobrava o dinheiro das sisas e despachava barcos”.
No seio da endinheirada burguesia Portuense, Videira afirmava-se como empresário de sucesso, a avaliar pelas relações mantidas com membros das famílias Pina, Tovar, Cunha, Isidro, Preto, Vila Real, Espinosa… (3)
No ano de 1618 a cidade foi varrida por um furioso vendaval lançado pela inquisição. Mais de 100 grandes mercadores, ourives, banqueiros, rendeiros… a elite da burguesia portuense foi arrastada para as celas de Coimbra. A ponto de, contra as normas, António Videira ter ficado no mesmo cárcere de seu tio Domingos Henriques e de outro mercador do Porto, explicando os inquisidores:
-Por serem mais os presos daquela cidade que os aposentos dos cárceres, era forçoso que alguns estivessem juntos. (4)
E tão atulhados de papéis estavam os notários que, estando um ano e meio preso em Coimbra o nosso biografado, nenhum auto foi acrescentado ao seu processo. Apenas o inquisidor Barreto de Meneses escreveu umas notas no seu caderno, as quais foram depois transcritas para o processo organizado em Lisboa, explicando-se ali:
- Por serem muitos os presos e os notários mui ocupados…
Sim, que em Março de 1620, António Videira foi transferido para os Estaus onde todo o processo se desenrolou. A começar pelo inventário de seus bens, o qual tem um extraordinário interesse para o estudo do desenvolvimento urbanístico de Vila Flor onde ele tinha duas casas de dois sobrados, com quintal e um pedaço de tapado e mais uma casa térrea com um lagar na Rua que vai para a Fonte; outras casas sobradadas na Rua Nova, “com portas para ambas as ruas e saída sobre o muro do concelho”; tinha mais umas casas térreas na Rua da Portela e ao S. Martinho. Fora de Vila Flor, tinha uma casa servindo de tulha ou armazém em Foz Tua e uma casa sobradada em Braga, cidade onde tinha também o contrato da Chancelaria.
De propriedades agrícolas citamos a Quinta da Barquinha, com uns 7 hectares, um souto ao Arco, um olival e um tapado ao Vale de Maria Farinha e outro ao Grilo, que levava 50 alqueires de semeadura. Tinha mais umas herdades em Samões e umas oliveiras em Vilarelhos.
Obviamente que o grosso de seus dinheiros andava investido contratos, letras e demandas por dívidas, sendo o fidalgo Manuel de Sampaio um dos grandes devedores. Investimento maior no comércio, tendo em trânsito para o Brasil quantidade de fazendas, pregaria e ferragem, contra encomendas de açúcares em vários barcos, com os cabedais necessários entregues a vários mestres de navios, que nunca se devem meter os ovos todos no mesmo cesto.
Escusado será dizer que as denúncias de judaísmo choveram sobre ele. (5) De contrário, durante os quase 6 anos que esteve preso, Videira não denunciou ninguém, antes apresentou contraditas bem credíveis, como alguns juízes reconheceram na sentença. E quando constatou que não adiantava provar que era bom cristão nem as contraditas relevavam, ensaiou uma defesa eminentemente jurídica e teológica. Vejamos as suas próprias palavras:
- Sendo presas as ditas pessoas que ele réu aqui pôs expressas e declaradas (…) por culpas que delas havia, a justiça as obrigou a jurar (…) e lhes foi dado juramento se eram cristãs, disseram que sim, sendo falso (…) e cada uma delas, depois de terem jurado e ratificado nos ditos juramentos, confessou andar apartado da nossa santa fé católica e serem judeus havia anos, por onde ficaram perjuros, de modo que a seu testemunho se não deve dar fé.
Assim tratadas de perjuras todas as testemunhas, Videira, pôs em causa a seriedade de dois inquisidores de Coimbra. Um deles, chamado Gaspar Borges de Azevedo, tio afim do meirinho Diogo Monteiro, de Torre de Moncorvo a quem o seu irmão Diogo Fernandes dera bofetadas e espancara. O outro era Simão Barreto de Meneses, que o Videira acusava nos termos seguintes:
- Nas audiências e admoestações que fazia aos presos (…) lhes fazia tanto medo e ameaças e os tratava com tanto rigor nas palavras, que andavam assombrados (…) e o dito senhor Simão Barreto de Meneses ia todos os dias aos cárceres duas e três vezes, a qualquer hora do dia, e mandava açoitar na sua presença assim homens como mulheres (…) dizendo a cada uma delas primeiramente se queria confessar que os não açoitaria; e por dizerem que não tinham que confessar, os mandava açoitar até lhes correr sangue, dizendo em altas vozes que se ouviam pelo cárcere “dai, dai nesse cão, matai-o” (…) e tantos e tão cruéis castigos eram os que no dito cárcere se faziam por modo contínuo em homens e mulheres, que dizia publicamente o alcaide Simão Fernandes “eu não sei que vos faça, não vos posso valer, sou mandado, não tendes outro remédio senão confessar e sair daqui, que isso é o que quer o inquisidor” (…) e muitas pessoas, com muitas opressões e rigores e grandes crueldades que no dito cárcere se faziam de contínuo, diziam publicamente que por se livrarem de tal aperto, diziam tudo o que quisessem…
Onde se viu tão clara denúncia dos métodos da inquisição? Invocar o testemunho do alcaide dos cárceres contra o inquisidor?!
Finalmente, quando lhe leram a sentença tomada em Lisboa, na “junta dos senhores inquisidores e prelados”, António Fernandes Videira apresentou “embargos de nulidade e suspeição de retaliação” baseados no facto de um dos membros da “junta” ser o inquisidor Pero da Silva Sampaio, apresentando provas de que o pai e um irmão do dito inquisidor eram inimigos do réu e de sua família, havendo-se registado grandes brigas entre eles e muito especialmente com o seu sogro Lançarote Rodrigues.
Claro que nenhuma destas contraditas e suspeições foi aceite e António Fernandes Videira acabou queimado na fogueira do auto público da fé celebrado em Lisboa no dia 5 de maio de 1624. Para este horroroso final muito terá contribuído o testemunho de um padre seu companheiro de cárcere que dele disse:
- Todas as vezes que há ocasião de lhe falar em auto de fé, diz aos companheiros que não confessem porque mais vale morrer que confessar e que ele assim o há-de fazer (…) que não há-de confessar o que não fez, antes quer morrer mil mortes.

Notas e Bibliografia:
1-Manuel F. Videira e Beatriz Cardosa (1534-1600) terão residido no Porto, com morada estabelecida na Ferraria Nova, mudando-se para Fontelonga (Ansiães) fugindo à “peste grande” que grassou no Porto. Ali terão vivido por 15/16 anos, mudando-se depois para Torre de Moncorvo onde faleceram por volta de 1600.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 909, de António Fernandes Videira.
3-Branca Cardosa, irmã de António Videira, era casada com o médico António Rodrigues Espinosa, natural de Vila Real e morador no Porto.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 11260, de António Fernandes Videira.
5-O conjunto das denúncias contra Videira e as contraditas por este apresentadas permitem fazer um fantástico retrato da sociedade mercantil portuense da época, coisa que não caberá no âmbito deste trabalho.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

Sem comentários:

Enviar um comentário