terça-feira, 21 de novembro de 2017

Nós, Transmontanos, Sefarditas e Marranos - DIOGO HENRIQUES CARDOSO (PORTO, 1582 – ANVERS 1641)

Domingos Henriques, mercador e rendeiro de Torre de Moncorvo, foi casar ao Porto com Isabel Cardoso Baeça (1) e tiveram 3 filhas e 2 filhos, um deles batizado com o nome de Diogo Henriques Cardoso, que nasceu por 1582.
Em Julho de 1604, Diogo embarcou na caravela Nª Sª da Boa Viagem para o Brasil, com o objetivo principal de negociar açúcar, um dos produtos que então animavam a economia europeia. Por 11 anos ali permaneceu, na região de Pernambuco, regressando ao Porto em Julho de 1615, na nau Nª Sª da Ajuda. Com ele, no Brasil, fez “estágio profissional” o seu irmão António Henriques Cardoso.
Chegou ao Porto doente e a doença agravar-se-ia no ano seguinte, a ponto que, durante 4 meses “esteve de cama sem se levantar, sangrando muitas vezes, sacramentado e ungido e já em artigo de morte, desconfiado dos médicos”. Curou-se por milagre – diria ele – milagre feito por uma toalha de Jesus que lhe trouxeram do mosteiro de S. Domingos, a seu pedido, feito com muita “devoção e fé”.
Antes, porém, soube que a irmã Branca Cardoso estava de casamento contratado com um Pero Henriques, de Viana do Castelo. Para acertar os pormenores dirigiu-se àquela cidade do Minho, acompanhado de Gaspar Cardoso de Pena, (2) seu cunhado, marido da irmã Beatriz Henriques. Aí, Pero Henriques apresentou-lhe a irmã Filipa da Costa e propôs que Diogo casasse com ela. Este recusou e Pero Henriques rompeu o acordo de casamento com Branca. Esta viria depois a casar com Álvaro Vaz Nogueira, mercador no Porto, avô materno de sua futura mulher.
E não era apenas o casamento de sua irmã Branca que esperava o regresso de Diogo do Brasil. Também a outra irmã, Catarina Cardoso, estava de casamento contratado com João Luís Gomes, mercador, emigrado em Sevilha. (3) E coube a Diogo levar a irmã para ser “recebida” pelo marido. Demorou-se nesta diligência uns dois meses, regressando em Janeiro de 1618.
Neste mesmo ano, Diogo Henriques viu-se metido em um terceiro contrato nupcial, desta vez em Torre de Moncorvo, onde ele próprio foi casar com Catarina Henriques, filha de Vasco Pires Isidro, um grande mercador com trato e casa comercial repartida entre a Torre de Moncorvo, o Porto e Madrid. (4)
O casal fixou residência no Porto (5) e, em setembro desse mesmo ano, estando casados há 4 meses, Diogo Henriques foi preso pela inquisição de Coimbra. No seu processo não consta o mandato de prisão, mas uma nota dizendo: (6)
- Este réu foi preso por uma lista geral, como consta de uma certidão (…) acostada ao processo de Miguel Pais, de Coimbra.
Imagine-se: o trabalho dos escrivães da inquisição era tanto que nem transcreviam o mandado de prisão para o processo! E nem sequer algumas culpas, conforme o registo seguinte:
- As testemunhas abaixo nomeadas disseram deste réu (…) e não se trasladaram aqui: Filipa da Costa, Pantaleão da Silva, João de Leão e Lourenço Gomes.
Mais ainda, uma terceira prova de que as prisões inquisitoriais se encontravam atulhadas: Diogo foi metido numa cela em companhia de Manuel Rodrigues Isidro, tio de sua mulher, assim contrariando todas as regras do regimento da inquisição.
Um companheiro de cela foi “bufar” aos inquisidores a familiaridade e as conversas deles, pelo que logo os separaram e “despacharam” Diogo Henriques Cardoso para a inquisição de Lisboa onde começou por negar todas as acusações de judaísmo e tentar provar que era muito bom cristão, posição que manteve durante quase 3 anos. Para isso apresentou uma infinidade de contraditas, as quais constituem um colorido retrato da sociedade mercantil do Porto naquela época. Vejamos apenas uma delas, referente ao médico Lopo Dias da Cunha e seus filhos.
Estes tinham arrendado o contrato dos 3%, ou seja o imposto pago pelas mercadorias transportadas nos barcos que atracassem no Porto. Era uma fantástica fonte de receita, pagando eles 9 contos e 600 mil réis cada ano, com um lucro estimado de 6 contos/ano. Preterido no negócio e considerando-se “homem muito poderoso”, Diogo Henriques formou uma companhia com dois sócios e arrendou contrato semelhante no porto de Vila do Conde, para onde fazia desviar muitos barcos que, de outro modo, aportariam em Matosinhos. Obviamente que isso provocou inimizades com Lopo da Cunha, filhos e outros familiares, os quais, vendo-se presos na inquisição, o denunciariam por ódio e não por amor à verdade.
Claro que não era fácil enganar a “justiça divina” e, ao fim de quase 3 anos, Diogo Henriques acabou por confessar que fora judeu e estava arrependido, pedindo misericórdia. Contou que fora catequizado uns 14 anos atrás, no Brasil, por um Pero Henriques, irmão de seu pai. De seguida denunciou umas 50 pessoas que com ele se tinham declarado seguidores da lei de Moisés e feito cerimónias judaicas. Vejamos apenas uma dessas denúncias:
Disse que, haverá 6 anos e meio, em casa de Francisco de Cáceres se juntaram com eles António da Fonseca, Marco de Góis de Morais, Simão Rodrigues Lima, Fernão Gomes Mendes, Gaspar Mendes, Rodrigo Fróis e Rodrigo Fernandes “para fazerem uma companhia para assegurarem mercadorias para o Brasil e assentando-a, disse um deles que se ganhassem se desse no fim do ano 10% para o casamento de uma órfã da nação (…) e que esta fosse mulher que tivesse conhecimento de Deus, querendo dizer que fosse judia (…) pois a Misericórdia não entendia com elas, nem lhe dava nada”.
Impressionante esta iniciativa de mercadores portuenses: criar uma companhia de comércio e destinar 10% dos lucros para financiar o casamento de uma rapariga pobre, órfã, reconhecida pela sua crença judaica! Cruel para a Misericórdia do Porto a justificação! A iniciativa não resultou porque a companhia não deu lucros e se desfez ao cabo de um ano, com a vaga de prisões lançada pela inquisição.
Resta dizer que Diogo Henriques Cardoso foi penitenciado no auto de fé de 8.11.1621, contando 39 anos. Terá regressado ao Porto, certamente menos “poderoso” mas com indómita vontade de viver e trabalhar. E sentindo-se socialmente enxovalhado, obrigado a vestir o malfadado sambenito, pôs-se em fuga para a França. Vamos encontrá-lo a viver na cidade de Ruão em 1633, na lista de 36 mercadores denunciados às autoridades pelo padre Cisneros como judeus e residentes ilegais, juntamente com o seu cunhado, irmão de sua mulher, Francisco Lopes. Veja-se como ele foi apresentado por Cecil Roth:
- Diogo Henriques Cardoso était un marchand de haut rang dont les affaires furent considérables dans le commerce de Rouen à cette époque. (7)
Não vamos falar do processo desencadeado por Cisneros e que subiu às mais altas instâncias de França. Diremos tão só que Diogo Henriques abandonou a cidade e foi para a Flandres, estabelecendo-se em Anvers. Mas não deixaria de negociar açúcares em França, a partir de Ruão, açúcares enviados do Porto por seu tio André Rodrigues Isidro e outros mercadores Portuenses, que os recebiam do Brasil. Prova disso é a denúncia feita por Simão Lopes Manuel, um “traidor” de Ruão, comparsa de Cisneros, que em 26.11.1637 se apresentou na inquisição de Coimbra, dizendo:
- Ora veio a sua notícia que na cidade do Porto se estava carregando um navio para fazer viagem em direitura para a dita cidade de Ruão e que tem por certo ele denunciante que toda a fazenda que for no dito navio é para alguma das ditas pessoas acima nomeadas, que no Porto lhe carregam seus correspondentes, os quais são Manuel Fernandes de Morais, preso que foi nesta inquisição e reconciliado; André Rodrigues Isidro, cristão-novo e poderá também ser…
Era a “rede familiar de negócios” em pleno funcionamento. E certamente haveria de continuar depois da morte de Diogo Henriques Cardoso, acontecia em 1641, segundo informação de Cecil Roth.

Notas e Bibliografia:
1-Ambos foram prisioneiros da inquisição: ANTT, inq. Coimbra, pº 8658 e 4374, de Domingos Henriques; pº 2521, de Isabel Cardosa.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 8461, de Gaspar Cardoso de Pena, rendeiro, natural de Vila Franca, termo de Bragança. Sua mulher, Brites Henriques, faleceu em setembro de 1618, quando a inquisição prendeu o marido.
3-Porventura as funções de “chefe de família” eram assumidas por Diogo Cardoso, em razão de seu pai, ter sido antes processado pela inquisição.
4-Por essa altura Vasco Pires Isidro mudou a sua residência para Madrid, onde “tratava em muitos negócios de especiarias e roupas” e “arrecadava os juros de D. Francisca de Aragão e de seus filhos (…) de que lhe faz pagamento nessa Corte” – ANDRADE e GUIMARÃES, Os Isidros a epopeia de uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo, ed. Lema d´Origem, Porto, 2012.
5-A casa de morada, sita ao Padrão de Belmonte seria propriedade do sogro, Vasco Isidro, e estava alugada a Álvaro Gomes Bravo, que dela foi então despejado, conforme contradita apresentada por Diogo.
6-ANTT, inq. Lisboa, pº 3080, de Diogo Henriques Cardoso.
7-ROTH, Cecil, Les Marranes à Rouen: un chapitre ignore de l´histoire des Juifs de France; ANDRADE e GUIMARÃES, A Traição de Ruão, in: Jornal Terra Quente, nº 212, de 2002-05-15 e 213, de 2002-06-01.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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