segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Saque de Bragança

Entretanto, o general António José Claudino, comandante de uma divisão volante, participava de Vinhais ao Ministro da Guerra, em 23 de Novembro de 1826, que os povos da raia estavam revoltados, sendo muitas as guerrilhas que cometiam infinitos roubos e desacatos, chegando em Miranda do Douro a nomearem autoridades e a chamar às armas os povos e milicianos daqueles contornos.
Outrossim dizia constar-lhe: que o marquês de Chaves parecia mover-se na direcção de Bragança, e por isso ele Claudino ia dirigir-se para esta cidade, o que não fez, pois em ofício para o mesmo ministro, datado de Santa Valha do dia seguinte, dizia que os rebeldes do 11, 24 e 7 de caçadores, comandados pelo marquês de Chaves e visconde de Montalegre, entraram na manhã do dia antecedente em Bragança na força de oitocentos ou mais infantes, cento e cinquenta cavalos e mais de mil guerrilhas portuguesas e espanholas e que o coronel José Lúcio Travassos Valdez, depois conde do Bonfim, então comandante de uma brigada, composta de infantaria 3 e 21 e cavalaria 12, os esperara fora da cidade.
No campo de Santo António, mesmo ao cimo da rua, onde agora está uma alameda, no Toural dos porcos, contíguo à estação do caminho-de-ferro, teve lugar o recontro na manhã de 23 de Novembro de 1826.
O tenente-coronel Abreu opôs aí denodada resistência à vanguarda de cavalaria das tropas invasoras, matando-lhe trinta e sete homens, entre os quais o capitão Castanheira, e ferindo noventa e um. Mas, crescendo superiormente a tropa invasora, cederam o campo e recolheram-se ao castelo da cidade, tendo de se render no dia 26 desse mês e ano.
Claudino, receando a superioridade das tropas invasoras e também porque a insurreição já lavrava em Lomba, Vinhais, Bragança e Miranda, retirou sobre Chaves no intuito de, unido com as tropas do general José Correia de Melo, governador das armas da província de Trás-os-Montes, virem ambos socorrer Bragança, o que não fizeram por simples poltronaria. Ainda assim, Correia de Melo conseguiu que o marquês de Angeja, general do Minho, a quem escrevera pedindo auxílios, lhe mandasse o coronel Zagalo comandando uma coluna composta de diferentes corpos a reforçá-lo pelos lados de Mirandela.
Não deixa de ser engraçada a comunicação que, a 3 de Dezembro desse ano de 1826, fez de Franco, e em 5 e 6 de Vila Pouca, o general Correia de Melo ao ministro, declarando a resolução de marchar sobre Bragança, ao passo que avançava mais e mais para o centro da província menos infestada por guerrilhas, com as quais ele nada queria. Pouco depois estava em Vila Real, porque, diz ele, não tinha segura a estrada de Chaves, onde haviam aparecido guerrilhas, e em Moncorvo lhe cortava o passo um tal Ordaz à frente de outras guerrilhas.
A tropa de Valdez, encerrada no castelo, rendeu-se a 26 do mesmo mês e ano, pelas 2 horas da tarde; os oficiais e oficiais inferiores foram conduzidos para Espanha por lanceiros espanhóis, indo presos com cordas dois a dois, e os soldados metidos armados nas suas fileiras.
Adiante damos o relatório de Valdez que pormenoriza os factos referentes a Bragança neste tempo.
Mas logo que a guarnição de Bragança se recolheu ao castelo, a cidade foi metida à pilhagem, ao saque de terrífica memória, ainda hoje fresca na tradição dos nossos maiores. Os regimentos de milícias e muitos paisanos armados, debaixo do nome de guerrilhas, cometeram aí atrocidades inauditas durante três dias: o roubo, a violência e o morticínio exerceram-se largamente.
Ao mesmo tempo organiza-se em Bragança a Junta do Supremo Governo Provisório, composta do marquês de Chaves, presidente; visconde de Vila Garcia, vice-presidente; brigadeiro Francisco de Morais Madureira Lobo, deputado, e José Manuel Ferreira de Castro e Sousa, secretário.
Esta Junta faz correr, pela impressão, o seu manifesto, onde se pregoam as benemerências do Governo de D. Miguel; e, em aviso de 3 de Dezembro de 1826, manda «que o juiz de fóra de Outeiro proceda, sem perda de tempo, contra todos os depositarios e recebedores dos dinheiros da real fazenda, para apurar e remetter ao juiz de fóra desta cidade (Bragança), no menos espaço possivel, todas as sommas que possa apurar, não esquecendo dos tres por cento dos couros de Carção, que immediatamente devem ser arrecadados; assim como que proceda summaria e executivamente contra os relacionados no reverso d’esta, para que entrem com as quantias em que vão multados, incontinentemente, fazendo-os para isso prender e penhorar, se tanto fôr preciso».
Os indivíduos constantes da relação a que acima se alude, e as quantias com que deviam entrar, são os seguintes, todos naturais de Argozelo:

Rafael Rodrigues de Paula ......................................... 1.000$000
Raimundo André de Quina, deputado ......................... 2.000$000
António do Nascimento .................................................. 300$000
Domingos Manuel Falcão ............................................ 2.000$000
António Dias Possas ...................................................... 400$000
Francisco de Oliveira, quartel-mestre .......................... 1.000$000
Domingos Rodrigues de Paula .................................... 1.000$000
Afonso Rodrigues de Paula ......................................... 1.000$000
Roque Rodrigues Praça ................................................. 200$000
Manuel Luís Esperto ...................................................... 500$000
António Manuel Rodrigues Praça .................................. 200$000
Roque Rodrigues Frade ................................................ 200$000
Domingos Pires Frade .................................................. 200$000
José Rodrigues Praça ................................................... 200$000
Bento Gonçalves Sargento ........................................... 100$000
Manuel Rodrigues de Paula .......................................... 200$000
José António de Oliveira ............................................... 200$000
Domingos Rodrigues Neves ......................................... 200$000
                                                                                    —————
                                                                                   10.900$000

Então ainda Bragança tinha enorme importância comercial. As suas fábricas de veludos e sedas, se não estavam já no seu período áureo, sustentavam contudo um largo comércio; ao mesmo tempo a sua grande produção de vinho permitia-lhe uma vida desafogada. O tratado de Methuen, celebrado com a Inglaterra a 27 de Dezembro de 1703, apesar de fazer a desgraça de Portugal, trouxe decididas vantagens às povoações da raia seca, por lhes facilitar a entrada, por contrabando, das mercadorias inglesas em Espanha, e com ele tanto prosperou Bragança, que algumas casas inglesas aqui vieram estabelecer-se, e por isso mais tarde os negociantes Hoile e Askwart reclamaram do Governo português 10.000 libras pelos prejuízos causados pelo saque nos seus armazéns.
O marquês de Chaves diz que o visconde de Montalegre roubou em Bragança 300.000$000 réis.
As guerrilhas devastam amplamente o nosso distrito. A 19 de Janeiro de 1827, Correia de Melo bate algumas delas em Chaves e obriga-as a retirarem-se sobre a povoação de S. Vicente da Raia, em direção ao extinto concelho de Lomba, indo ele no seu alcance, aprisionando alguns naquela povoação e escapando os outros para a Galiza. Ao mesmo tempo, por sua ordem, o coronel Lago, de infantaria 12, atacou com bravura as guerrilhas absolutistas, postadas nas pontes de Vale de Armeiro, onde lhes matou cinco homens e feriu muitos, obrigando-as a retirarem-se em geral dispersão.
A conduta de Lago nesse recontro foi digna de elogio, pela habilidade com que dirigiu o movimento. Já ao marchar para as pontes havia feito alguns prisioneiros de tropa inimiga, encontrados em Lebução.
Ao mesmo tempo, outras guerrilhas absolutistas internavam-se em Espanha, em 24 de Janeiro de 1827, passando o Douro em Freixo de Espada à Cinta, e marchando outras sobre Vila Flor.
A 24 de Fevereiro de 1827 participava Correia de Melo ao ministro Cândido José Xavier que os rebeldes, como ele lhes chama, segundo informações que tinha, estavam em Mirandela e guarneciam a ponte desta vila, a de Vale de Armeiro à sua direita e a de Abreiro à sua esquerda, e com eles havia já feito junção Teles Jordão, que para aquela linha do Tua marchara de Vila Pouca a 21 do mesmo mês, levando uma peça de artilharia, cem cavalos do regimento nº 14, algumas milícias e o batalhão de caçadores nº 4.
Às 11 horas da noite de 26 do mesmo mês, já Correia de Melo participava ao conde de Vila Flor a sua chegada a Mirandela, que os inimigos haviam abandonado, na noite precedente, deixando baptizada a ponte que Teles Jordão tomara a direcção de Moncorvo, indo defender a ponte de Abreiro, ao mesmo tempo que o marquês de Chaves, com o maior número das suas forças, guarnecia, ao que supunha, as pontes de Vale de Armeiro ou Vale de Telhas, ou marchava sobre Bragança. Pedia, pois, a Vila Flor, então em Vila Real, que marchasse sobre Moncorvo para sustentar a sua direita no Douro, enquanto operava um movimento sobre a vila de Vila Flor, no intuito de observar o verdadeiro caminho seguido pelo inimigo e impedir a sua junção com os que guarneciam a ponte de Abreiro.
Vila Flor só no dia 28 marchou, não para Moncorvo, mas para Mirandela. A 3 de Março seguinte estava este em Moncorvo, de onde participou ao ministro Cândido José Xavier que Correia de Melo devia ter já entrado em Bragança e que os espanhóis, ao que lhe constava, não haviam permitido passar o Douro às tropas inimigas, que por isso se dirigiram por Mogadouro a Miranda do Douro.
A 4 de Março de 1827 entrava Correia de Melo em Bragança em perseguimento das tropas absolutistas que a haviam abandonado no dia anterior, retirando sobre Outeiro, onde, ou em Vimioso, fizeram junção com as do marquês de Chaves e Teles Jordão. Correia de Melo encontrou nas prisões de Bragança e em casas de particulares sessenta e quatro oficiais superiores e cento setenta e oito oficiais inferiores e soldados.
No dia seguinte pernoitou o general Vila Flor em Mogadouro e dia 6 em Sendim, estando as tropas inimigas em Constantim, Ifanes e Genísio, de onde se internaram em Espanha por Alcanices, chegando no dia 7 a Caçarelhos, Vila Flor, bem como Correia de Melo a Pinelo.
À vista disto, para impedir nova entrada dos inimigos em território português, retrogradou Vila Flor por Argozelo para Bragança e Correia de Melo foi ocupar Outeiro.
Internadas em Espanha as tropas absolutistas, ficava a região brigantina livre de guerrilhas pelos lados de Bragança, como participava ao ministro Correia de Melo a 9 de Março de 1827 do seu quartel-general do Vimioso, declarando que por Vinhais ia marchar ao concelho de Lomba, «que, com o de Chaves e Monforte, tem sido dos que mais se tem feito notar, pois no de Chaves ainda ha dias roubaram o fornecimento que vinha para a divisão do meu commando, e estão sempre em continuas correrias as guerrilhas do commando do celebre rebelde Cachapuz e do tenente coronel reformado Rodrigues de Vallepassos, districto de Vinhaes».
No entanto, os ânimos ainda não estavam serenados de todo. Ainda em ofício de 13 de Agosto de 1827, o juiz de fora do Vimioso, Bento de Gouveia Pereira Corte Real, remetia ao intendente geral da Polícia uma proclamação que aparecera impressa e afixada nas costas da sacristia da igreja matriz daquela vila. Idêntica fora remetida de Chaves. No entender da respectiva autoridade, eram forjadas em Espanha e excitavam energicamente o povo à revolta contra os inimigos do trono e do altar.
Os documentos seguintes melhor esclarecem o que levamos dito.
Ei-los:

«Ill.mo e Ex.mo Sr. — Levo ao conhecimento de v. ex.a, por não haver n’esta terra e suas visinhanças auctoridade alguma civil ou militar que possa cumprir com este dever, que tendo entrado em Moncorvo no dia 21 de fevereiro o marquez de Chaves com parte do seu exercito, affectando querer passar á Beira pelo Pocinho, fazendo para este effeito trabalhar na construcção de barcos, e retirando-se precipitadamente cinco dias depois para a villa de Freixo de Espada-á-Cinta e logar de Lagoaça, tentando passar à Hespanha n’estes pontos, por onde passou ha um mez para esta provincia; e encontrando algum embaraço, porque os hespanhoes guardavam os barcos, continuou a sua marcha ou fuga pelos povos d’este concelho, com direcção a Miranda ou á raia sêcca, que fica acima d’esta cidade, praticando em todas as aldeias por onde transita, toda a especie de violencias, sem que nada escapasse á rapina de similhante gente que, não só pela insubordinação e desmoralidade, mas ainda pela figura, longe de parecerem soldados, mais se assimilham a salteadores desgraçados; e por este modo, nos povos por onde passam vão desenganando todos os individuos que até agora eram affeiçoados a similhante partido.
No dia 27, às 2 horas da tarde, entrou n’esta villa o general Telles Jordão, e na mesma noite o regimento de infantaria 14 e caçadores 4 e algumas milicias de Bragança e Chaves que faziam parte da sua divisão; e no dia seguinte, ao amanhecer, sahiu a mesma tropa para o povo de Burçó, d’aqui a duas leguas e visinho ao Douro.
N’este mesmo dia entrou o resto da divisão: caçadores 7, um batalhão de infantaria 6 e perto de cincoenta cavallos, que tinham pernoitado na aldeia de Remondes, em distancia d’aqui uma legua, situada sobre a ponte do mesmo nome, no rio Sabor, por onde havia passado para a esquerda d’este rio toda aquella gente, que em marchas forçadas effectuava a sua retirada de Mirandella e ponte de Abreiro, com tanta precipitação que não sabiam uns dos outros, julgando-se todos alcançados pelo exercito constitucional, que diziam vinha picando a sua rectaguarda; o que o mesmo general suppunha, porque marchava muito adiante da tropa, a quem mandou a toda a pressa repartir cartuchame n’esta villa, á que entrou aqui no dia 28.
Destacou de dia e noite, partidas e piquetes fortes sobre o Sabor, e deteriorou muito a ponte d’este rio, por onde n’esta occasião acabava de passar o visconde de Canellas, acompanhado do guerrilheiro Gil, com perto de cem guerrilhas, encaminhando-se ao quartel-general do sobrinho.
No mesmo dia 28 foi mandado para a referida ponte um destacamento de caçadores 7 e infantaria 14; trinta e quatro soldados d’este regimento revoltaram-se no caminho, carregaram as armas e tentaram fugir para o exercito constitucional; porém, sendo encontrados no mesmo instante por um piquete de cavallaria que se retirava da ponte, foram desarmados e conduzidos presos.
No mesmo dia 28, á noite, chegou aqui o regimento de cavallaria 2, commandado por Alpoim; e no dia 29 toda a tropa se retirou de madrugada para os povos de Miranda, com tanta pressa que alguns corpos fizeram a marcha de seis léguas com um dia tempestuoso. Levaram, como acima disse a V. Ex.ª, tudo quanto encontraram, não escapando os gados que estavam nos campos, nas povoações e n’esta villa; além de outros roubos, levaram sessenta vaccas de uma quinta pertencente ao general Claudino.
Esta desprezivel gente tem uma força mui diminuta, tanto physica como moral; alguns corpos acham-se quasi extinctos e outros com menos de metade da força numerica que tinham no principio d’esta campanha; andam todos muito desanimados, com a ideia de entrarem de novo em Hespanha, como elles presumem.
O segundo batalhão de infantaria 6 anda vigiado e preso, tendo fugido já o primeiro, para que não faça o mesmo. Depois que este exercito passou para as terras do Miranda teem voltado aqui varios soldados de differentes corpos, que desertam e vem procurando o exercito constitucional, de que penso estará hoje uma divisão em Bragança; e a estes sitios, acaba de chegar a do commando do ex.mo conde de Villa Flôr.
Os officiaes superiores rebeldes e mesmo os subalternos estão em completa desintelligencia. É immenso o numero de paisanos que os acompanha: homens de todas as classes, capitães-móres, juizes de fóra e até clerigos e frades... — Mogadouro, 4 de março de 1827. — Francisco Joaquim Teixeira de Macedo. — Para o ministro dos negocios ecclesiasticos e de justiça».

«RELATORIO — Ill.mo e Ex.mo Sr. — Chegado a esta cidade no dia 12 do corrente, depois de haver soffrido: incommodos, trabalhos e infortunios, que seria ocioso e mui longo relatar, cumpre-me todavia participar a V. Exª que, achando-me eu em Bragança commandante das tropas estacionadas desde Vinhaes até Miranda, tendo debaixo das minhas immediatas ordens os regimentos de cavallaria 12 com umas noventa e tantas praças, infanteria nº 3 com 260, e infanteria nº 21 com 170 pouco mais ou menos: no dia 21 do mez proximo passado recebi um officio: do brigadeiro Claudino, datado de Mirandella em 20, designando-me que no dia 21 marchava para a Torre de D. Chama com a divisão do seu commando e no dia 22 para Vinhaes, se lhe não constasse que os rebeldes, que se haviam refugiado n’este reino de Hespanha, se dirigiam a Bragança, o que tambem desejava eu lhe communicasse (como na realidade fiz), porque, caso se dirigissem a Bragança, elle marcharia em direitura alli para me soccorrer, designando-me outrosim que me conservasse quanto possivel me fosse n’aquele ponto; que elle não perderia um momento em me auxiliar quanto estivesse a seu alcance.
No dia 23 ás 9 horas da manhã (tendo-se passado para os rebeldes as descobertas de cavallaria, que eu de noite e pela madrugada havia mandado na direcção que suppunha, e effectivamente traziam os rebeldes) fui avisado que elles se achavam á vista de Bragança, a distancia de meia legua.
Mandei então pegar em armas aos corpos, sahi com elles, posteios cobrindo as estradas e posições que me pareceram interessantes, e pouco depois rompeu o fogo d’elles contra a tropa do meu commando a qual mostrou em geral a maior firmeza, bravura e disciplina, na maneira com que repelliu o inimigo, a quem causamos grave perda, sendo mui pequena a da nossa parte. Infelizmente, apesar da maior energia e valor dos officiaes e officiaes inferiores de cavallaria nº 12, os soldados não os coadjuvaram em uma carga que mandei fazer contra a cavallaria dos rebeldes, no principio da acção, com que elles teriam sido completamente derrotados, apesar de serem o dôbro em numero; egualmente aconteceu que uma unica peça de calibre 6, que com os poucos meios que tinha arranjára para poder fazer alguns tiros, apesar de todos os meus esforços, não chegou a tempo, em razão da demora que houve em se facultar uma parelha para a conduzir.
N’estes termos, depois de resistir por três horas (tempo que eu suppunha bastante para chegar o brigadeiro Claudino com a divisão do seu commando), segundo a posição em que devia achar-se, como já referi, e porque os rebeldes tinham mais de mil e duzentos homens de tropa e dois ou tres mil paisanos armados de espingardas, e porque tratavam de tornear a minha direita e entrar na cidade, retirei-me ao antigo quartel do extincto regimento nº 24 com todas as tropas do meu commando, para entreter o inimigo e cortar-lhe a retirada no caso de chegarem as tropas do commando do brigadeiro Claudino.
Logo que entrei no quartel expedi paisanos, a quem dei do meu dinheiro e do que podia dispôr, com officios ao referido brigadeiro, de cujo resultado não tornei a ter conhecimento, apesar de lhes prometer lhes daria grandes sommas do que tinha recolhido á minha disposição na caixa regimental.
O inimigo tratou logo de me enviar um parlamentario para me render, por saber que a tropa não tinha que comer; eu, porém, nada quiz tratar com elle, pois que em similhante gente só reconhecia rebeldias, e soffri consequentemente o fogo durante o resto do dia 23, todo o dia de 24 e 25, luctando com a fome, etc., e perdendo então todas as esperanças de soccorro, porque me constou no dia 24, por um paisano chegado de Vinhaes, que o brigadeiro Claudino se havia retirado sobre Chaves, e porque a guarnição tinha desanimado por differentes motivos que com mais vagar exporei, e me achava falto de todos os meios de defeza e os necessarios para subsistencia; tratei no dia 26 de fazer uma capitulação, por meio da qual, salvando o possivel decoro das tropas de sua magestade o senhor D. Pedro IV, conservasse a vida a tão dignos guerreiros, ainda que arriscasse a minha, pondo-a nas mãos de homens animados de tão perversos principios. Os rebeldes, porém, transtornaram inteiramente a minha proposta, e debaixo do supposto nome de sua alteza o Senhor D. Miguel, intitulando-o rei de Portugal, propozeram nova convenção em consequencia do que, depois de eu fazer novas instancias para suavizar a sorte da tropa, afinal entreguei o quartel da villa ás 11 horas do dia, tendo eles annuido em parte ás minhas instancias.
Era das condições que os officiaes e officiaes inferiores ficassem prisioneiros, e os soldados com as suas espadas, uns e outros com as suas bagagens e pertences particulares, e todos no castelo em que fomos tratados com a maior indignidade, faltando os rebeldes até a darem as rações.
Assim nos tiveram até ao dia 29, em que nos fizeram ir de madrugada na direcção de Hespanha, conduzindo-nos a pé, á excepção de poucos officiaes que podémos conservar bestas, e isto debaixo de grandes chuvas, guardados por infames desertores de diversos corpos portuguezes, a que chamavam o batalhão da união, e por um tal official hespanhol da facção dos rebeldes.
Apenas se pôde vencer chegarmos n’aquelle dia a um povo portuguez, distante de Bragança duas leguas, onde nos metteram presos em duas casas ou palheiros; consuziram-nos no dia 30 a um povo de Hespanha, distante d’alli tres leguas, chamado Travaços, sendo acompanhados d’esde a raia unicamente por uma partida de cavallaria nº 9 até ao dito povo; sahimos d’alli no dia 1 do corrente acompanhados por uma partida do regimento de cavallaria hespanhola nº 5, que nos conduziram por Alcaniças, onde porém não nos deixaram ficar e nos conduziram a um povo distante uma legua, por nome a Bibimira; alli disse-me o tal official hespanhol, que nos conduzira de Bragança, que nós não eramos reputados prisioneiros em Hespanha, porque as duas nações estavam em paz.
No dia 2 de manhã, fazendo-nos marchar sem escolta, conduzindo-nos por caminhos que não conheciamos, conduziu-nos á raia de Portugal, onde nos entregou a paisanos armados, que nos conduziram n’esse dia a um povo distante de Miranda duas leguas, e no dia 3 a Miranda, faltando-se assim a tudo que se tinha ajustado, roubando-nos tudo que nós tinhamos, incluindo nossas espadas, não nos dando jámais rações desde que ficamos prisioneiros e pondo nossas vidas em risco no meio de povos amotinados, assim nos conservaram até ao dia 5, que nos conduziram acompanhados de uma escolta de veteranos, o que melhor explicarei em occasião opportuna, na direcção da villa de Mogadouro, aonde chegamos no dia 6 ao meio-dia. Alli, vendo eu o perigo em que nos achavamos, entre povos amotinados, indo-me faltando o dinheiro para sustentar aquelles que o não tinham, e porque a nossa palavra se não achava ligada, sabendo que havia alli sessenta e tantas armas, que em Hespanha havia ordem para se receberem quaesquer portuguezes, propuz que se pegasse nas ditas armas, desarmando tambem os veteranos, e que tratassemos de marchar para passar o Douro para este reino de Hespanha, e seguirmos depois, pedindo o competente passaporte para Portugal, áquelle ponto em que regesse a auctoridade legitima de sua alteza serenissima a senhora infanta, em nome de seu augusto irmão o senhor D. Pedro IV; effectivamente debaixo d’este ponto de vista fomos pernoitar, armados, no povo de Tornos.
No dia 7 sahimos de madrugada com tenção de ir á Barca de Alva, para passar o Douro; sendo porém perseguidos a uma legua de marcha por povos armados, dirigimo-nos á barca chamada de Vilvestre, adiantando-me eu para conseguir a passagem, não me foi possível obtel-a, e tive de tornar a subir a montanha para repelir os paisanos, enquanto se tratava de conseguir a passagem. Depois de os repellir e se praticarem diligencias, conseguiu o honrado capitão do regimento de cavallaria 12, Guilherme de Sousa Carneiro de Sampaio, passar a Hespanha, e logo depois os alferes Constantino de Beça Sousa e Menezes de infanteria 21, Fernando Luiz de infanteria 3, praticando o primeiro apesar da fome e fadigas, os mais efficazes esforços para que passassem todos os mais que nos acompanhavam; apenas se conseguiu que os barqueiros me chamassem e me conduzissem a este lado do rio, indo em minha companhia o cirurgião-mór do regimento do meu commando, Francisco de Campos Beltrão, para tratarmos do nosso importante objecto, seriam tres horas e meia da tarde, chegando á noite ordem do sub-delegado de policia de Sancelle (duas leguas distante) para poder passar para este reino de Hespanha o resto da tropa em consequencia das instancias que havia praticado o dito capitão de cavallaria 12, dirigindo-me outra vez na barca a Portugal, para assim se effectuar; mas então os paisanos armados fizeram fogo sobre mim e os barqueiros, e eu fui sabedor que já os officiaes e officiaes inferiores se tinham visto na necessidade de ceder aos paisanos, constando-me que se não praticaram excessos e que foram conduzidos a Freixo de Espada-á-Cinta pelo major das ordenanças, e que alli os aboleraram e conduziram no dia 8 a Torre de Moncorvo á presença de Luiz Carlos Ordaz, e nada mais tornei a saber d’elles. — (...) Salamanca, 16 de Dezembro de 1826. José Lúcio Travassos Valdez».




Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança

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