segunda-feira, 12 de março de 2018

Casamento de D. Inês de Castro

Morto el-rei D. Fernando a 22 de Outubro de 1383, o reino, na perspectiva de ir cair nas mãos d’el-rei de Castela, casado com D. Beatriz, única filha de D. Fernando, começou de bandear-se para o partido do Mestre de Avis; e nas cortes de Coimbra, celebradas em 1385, procuraram os legistas, com o célebre doutor João das Regras à frente, demonstrar a quem de direito pertencia o reino, e como os filhos de D. Inês de Castro podiam apresentar sólidas razões pela sua parte, trataram de as inutilizar, contestando a legitimidade do casamento desta com el-rei D. Pedro e mesmo a existência de tal acto.

Eis a súmula dos argumentos apresentados nessas cortes pelo manhoso jurista João das Regras:

1º argumento — Tal casamento nunca existiu, dizia ele, e não o houve durante a vida de D. Afonso, porque estando este rei em Coimbra e o infante nos paços de Santa Clara lhe mandou dizer por Diogo Lopes Pacheco (que estava agora ali presente) que se não queria casar com filha de rei, que recebesse por mulher a dita D. Inês, já que tanto a amava, ao que o infante respondeu: «que não era seu talante ao fazer por aficamento que sobre ello lhe fizessem, nem cuidava de a receber em dias de sua vida». E se alguém duvida disto, gritava o arteiro filho de Bolonha, pergunte-o a Diogo Lopes Pacheco que ali estava presente.
2º argumento — Nunca os filhos de D. Inês foram considerados como infantes, e pelo contrário, quando D. Afonso lhes dava alguma coisa, dizia na carta: «querendo fazer graça e mercê a D. João, meu vassalo, filho do infante D. Pedro, meu filho».
3º argumento — Nem D. Pedro faria tal casamento, a despeito do grande amor que tinha a D. Inês, atento a que esta era filha bastarda de D. Pedro de Castro e de uma mulher que nem merecia sequer se lhe ouvira o nome.
4º argumento — Acha inverosímil o esquecerem-se do dia, mês e ano em que tal casamento se fez.
5º argumento — Nem se diga que D. Pedro ocultou em vida de seu pai este casamento para o não desgostar; pois quem não teve receio de o amargurar pela guerra que lhe moveu, roubos, ruínas e mortes que cometeu associado a quantos malfeitores encontrou, menos devia recear a declaração da verdade, e era até azada ocasião para o fazer. Demais, se a não fez em vida do pai, porque deixou correr quatro anos depois da morte deste, para fazer tal declaração? É, respondia-se a si mesmo o arguto discípulo de Bártolo, porque em vida do pai, nem depois até àquele tempo, nunca pôde obter a dispensa do Papa que lhe legitimava os filhos, e só depois de conseguida esta publicou o seu casamento para mostrar que eram lídimos.
6º argumento — De resto, nem tal casamento podia efectuar-se por lhe obstar o impedimento de compadrio e um outro de consanguinidade.

Que tais argumentos, apesar de serem secundados por uma eloquência demosténica, pesavam pouco no ânimo das cortes, vê-se do próprio Fernão Lopes, no capítulo CLXXXVIII, pois, a despeito de tudo, muitos estavam convictos de que o reino por direito pertencia aos filhos de D. Inês.
Nuno Álvares Pereira chegou mesmo a propor ao Messias, como então chamavam ao Mestre de Avis, a morte de Martim Vasques, chefe dos que assim pensavam. D. João recusou nobremente tal oferta, o que não impediu, contudo, que Nuno Álvares Pereira fizesse junto dele, no Paço onde os membros das cortes estavam, certo alarde de armas, com evidente intuito de intimidar os contrários que, receosos, se foram sumindo à formiga.
Era o argumento decisivo da espada que, sem querer ceder o lugar à toga, lhe trazia a sua cooperação em novas batalhas no campo do pensamento.
De todo esse capítulo ressalta bem nítida a convicção de que o das Regras e Nuno Álvares Pereira, as duas eloquências — uma, a brutal do guerreiro pela espada de Brenno, e outra, a dos textos, subtil, sofística e arteiramente interpretados pela renovação do direito — cortavam por tudo só para darem a Coroa a D. João. E, no entanto, os espíritos das cortes continuavam indiciosos, irredutíveis às rabulices do jurista e alardes de força do militar. É então que o rabula manhoso apresenta na arena as últimas e decisivas armas, com pasmo daquele que afeito à suprema ratio da espada não compreendia como uma coisa imponderável, impalpável — o pensamento —, uma coisa, enfim, que se não podia agarrar com as mãos, com que se não podiam fazer gilvazes e dar catanadas, ia decidir batalhas.
Foi então, como íamos dizendo, que o das Regras, azabumbados e cansados os ânimos com os tóxicos da sua rabulice — ele velha raposa matreira — apareceu nas cortes sobraçando amarelentos pergaminhos «usados de velhice», como traz Fernão Lopes, velhas bulas, cartas e diplomas, e põe em jogo todos os bastos recursos da sua mente fértil.
Leu então uma carta, escrita, segundo ele dizia, por D. Afonso ao Papa, na qual lhe pedia que por maneira nenhuma acedesse ao pedido de D. Pedro, concedendo-lhe a dispensa para casar com D. Inês, o que mostra que este fizera para Roma tal pedido.
Leu depois um pergaminho, assinado por Gomes Pais de Azevedo e por mestre Afonso e outros do Conselho do rei D. Pedro, onde o Papa Inocêncio VI dizia que não podia aceder ao pedido da dispensação.
Esta bula, que o cronista traz na íntegra, foi dada em «Vinhão idus do mez de junho do nosso pontificado anno novo (?) deve ser nono». Ao tempo desta bula já D. Inês e o filho primogénito de D. Pedro e D. Constança, chamado D. Fernando, eram mortos.
Pelos modos, D. Pedro dirigira tal pedido de dispensação para que não fizesse dúvida, vendo-se sem herdeiros, o reconhecerem-lhe como legítimos os infantes D. João, D. Dinis e D. Beatriz, seus filhos havidos de D. Inês.
A bula do Papa João XXII, que adiante apontamos, fora concedida a D. Pedro, quando, sendo moço, esposou D. Branca, filha do infante D. Pedro, que morreu nas veigas de Granada, com a qual depois não quis casar. Esta mesma bula e geral dispensação foi utilizada para o casamento que fez com D. Constança, filha de D. João Manuel; e por ela é que, segundo D. Pedro disse, casou com D. Inês.
Do texto do pergaminho acima referido, que traz a resposta do Papa Inocêncio VI, dada na íntegra por Fernão Lopes, vê-se como não há dúvidas sobre o facto da realização de tal casamento em Bragança mas sim sobre a sua legitimidade.
Casou, pois, o infante D. Pedro, mais tarde rei primeiro deste nome em Portugal, com D. Inês de Castro, na cidade de Bragança, não em templo algum, mas na própria casa de habitação, pelos anos de 1353, num dos primeiros dias do mês de Janeiro, sendo celebrante do casamento D. Gil, deão da Guarda e mais tarde bispo da mesma Sé.
Duarte Nunes de Leão, descrevendo ao ano de 1361 o auto pelo qual D. Pedro declarou D. Inês por sua mulher legítima, engana-se, pois foi em 1360. Ver adiante o documento nº 62.
Fernão Lopes diz que houve logo quem duvidasse da veracidade de tal casamento, pois sendo este acto coisa tão importante na vida de um indivíduo, como é que D. Pedro e testemunhas se esquecem por completo do dia, mês e ano em que fora celebrado?!
Demais, se, conforme D. Pedro dizia, com o temor e receio de seu pai, não ousara descobrir este casamento em vida dele, quem lhe tolhera depois da morte deste torná-lo público?
E mais diziam, continua o nosso cronista, que este feito queria parecer semelhante a el-rei de Castela, D. Pedro, pois, conquanto mandasse matar D. Branca, sua mulher, enquanto D. Maria de Padilha, sua amante, foi viva, nunca a publicou por esposa, como fez depois da morte desta nas cortes de Sevilha, declarando que antes de D. Branca ser sua mulher havia ele casado com a Padilha, sobre a veracidade do qual facto deu testemunhas aos Santos Evangelhos, que juraram assim ser na verdade, e mandou que lhe chamassem rainha, posto que já fosse morta, e infantes aos filhos.
As dúvidas do pai da nossa história não devem ter peso se atendermos ao palacianismo intransigente e invulnerável que pesava sobre o cronista e continuadores no ofício, pois fala do partido dominante e o feitio louvaminheiro da época tendia a justificar o facto consumado a despeito de ser Fernão Lopes de todos os nossos cronistas o menos atacado desse vício.
E, como tendo-se realizado legitimamente esse casamento, o trono português pertencia aos filhos de D. Inês e não ao Messias, e de Fernão Lopes constam originariamente estas notícias, não admira que alguns escritores portugueses tenham seguido a sua opinião menos reflectidamente.
Pelo que respeita aos argumentos do arguto João das Regras e à brutalidade do distinto cabo de guerra D. Nuno Álvares Pereira, condestável de Portugal, lançando numa discussão de direito a rude, embora brilhante, espada de guerreiro, com o fim de convencer os que não iam feitos nas lérias do primeiro, fazem-nos lembrar a singela fórmula do crê ou morres, ladeada por uma bela peça retórica bem arquitectada por sofista consumado, que com a mesma perícia sustentaria a contrária preposição se os filhos da «mísera e mesquinha que depois de morta foi rainha» conseguissem o trono.
E já que evocamos a lira, ouçamos a seguinte oitava que não será a despropósito:

Es Tras los Montes la porcion segunda
De heroicas poblaciones adornada,
Donde Miranda episcopal se funda
Sobre peñascos bien encastilhada.
Del rei Brigo Bragança hija segunda
De la Inez bella, como desdichada,
Talamo, em lleno delicioso brilla,
De esclarecidos duques alta silla.

Obedecendo à mesma ordem de ideias, João das Regras tratou também de inutilizar as pretensões de D. Beatriz, filha do rei D. Fernando, casada com el-rei de Castela, e contestando a sua legitimidade dizia que D. Leonor, sua mãe, «era infamada de fazer maldade» a seu marido. «Cá, continuava o manhoso doutor, pois ela com dois dorme, mal será certa de qual deles emprenha».


Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança

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