sábado, 6 de junho de 2020

Epidemias, pestes, fomes e despovoamentos e Barulheira do Peneiro em Bragança

Pelos anos de 1377 representou o concelho de Bragança a el-rei D. Fernando, dizendo «que ante da pestenença primeira avya na dita vylla muytos omees de cavalo e de pee e que ora nom ha hy a sexta parte da companha que soia daber por rezom da pestenença e outro sy desta pestenença segunda que ora ffoy era despovorada», e por isso, no intuito de evitar este desfalque de população, pediam a el-rei que lhe fizesse guardar seus privilégios, seguro chamariz para engrandecimento do seu elemento populativo. El-rei assim o outorgou por carta de 25 de Maio da era de 1415 (ano de Cristo 1377).
Pelos anos de 1439 estava Bragança muito despovoada, como se vê por um capítulo das Cortes de Lisboa, celebradas nesse ano, que adiante damos por extenso, devido às malfeitorias que D. Duarte, senhor da cidade, praticava, a ponto que adentro de muros da vila não havia mais que vinte e cinco vizinhos, tendo dantes duzentos.
O Agiologio Lusitano, ao dia 24 de Março, celebrando as virtudes do padre Garcia Gonçalves, jesuíta do colégio de Bragança, falecido em 1559 no dia acima, diz que a sua morte lhe proveio «do imenso trabalho que tomou em lhes acudir (aos pobres) e remediar numa grande fome, que houve em seu tempo, de que caíam os homens mortos pelas ruas, praças e campos, sem haver quem lhes acudisse, andando ele de contínuo buscando-lhes esmolas e desencovando-as para os socorrer com elas».
Com semelhantes factos deve ter relação o seguinte letreiro que se vê por cima da porta da capela de S. Roque de Parada, concelho de Bragança:

SENDO OPREMIDOS DUMA
GRANDE PESTE OS MORADORES
DE PARADA FIZERAM VOTO O S
ROQUE NO ANNO
1505

Em 1710 também Bragança estava muito despovoada, a ponto que se não achavam «pelos livros das sisas mais que quatrocentos e tantos moradores constando pelos que estavam feitos dez anos antes que excederam o número de mil e quinhentos».
Aos 24 de Dezembro de 1804, tratando de se fazer o «encabeçamento da contribuição certa e anual que a fábrica das sedas desta cidade (de Bragança) há-de pagar nos quatro anos futuros sucessivos», os representantes dessa fábrica faziam ver que entre outras razões motivantes da pouca prosperidade desse estabelecimento fabril avultava «sobre tudo (e era) o mais poderoso motivo que presentemente abate e destrói a fábrica a mesma natureza que com o flagelo da peste e da fome tem assolado esta cidade (de Bragança) fazendo desertar e morrer muita gente, de cujo número parte são fabricantes que também se mudam para outras cidades do reino não podendo aqui sofrer tantos males».
Esta peste de 1804 deve ter sido tristemente notável, pois a ela aludem outros documentos. Os regimentos de cavalaria nº 12 e infantaria nº 24, pertencentes à guarnição de Bragança, representaram a el-rei pedindo a conservação do juiz de fora João Nogueiro da Silva, mais um triénio, alegando que entrara intrépido em Bragança, a 26 de Agosto de 1804, quando os naturais da cidade fugiam aterrados do contágio que nela grassava, o qual meteu inumeráveis indivíduos na sepultura.
A corporação da fábrica da seda também representou a el-rei no mesmo sentido.
Sete anos depois a fome assentou seus negros arraiais sobre a nossa região.
Por ordem régia de 31 de Outubro de 1811 foram dados ao corregedor de Miranda 6.000$000 de réis que devia empregá-los na compra de pão, a fim de o distribuir aos lavradores que deixavam por sementar muitas terras, principalmente no concelho de Vinhais, devido à escassez das colheitas naquele ano. A natureza e as invasões dos franceses contribuiriam igualmente para esta aflitiva situação.
O inverno de 1855 para 1856 foi notável pelas copiosas chuvas e pelas tristíssimas e escassas colheitas que se seguiram, principalmente de cereais, devido a que as chuvas não deixaram fazer as sementeiras.
A fome pairava ameaçadoramente sobre Portugal e o povo, confirmando o velho rifão «na casa onde não há pão, todos pelejam e nenhum tem razão», conspirava-se tumultuariamente contra tudo, vendo nas coisas mais disparatadas a causa da sua miséria. As medidas de fazenda do ministro António Maria de Fontes Pereira de Melo — as máquinas para a destilação de vinhos, por esse tempo largamente generalizadas no distrito de Bragança, nas quais o povo dizia que queimavam cereais, e a falta de trocos de dinheiro miúdo, retraimento ocasionado pela introdução das libras esterlinas, que ninguém queria receber sem o desconto de 200 réis — eram, no entender do povo, outros tantos motivos da geral miséria.
Em muitas terras houve então motins populares, como em Lisboa, nos dias 8 e 10 de Agosto de 1856, e pouco depois surgiu em Bragança a célebre Barulheira do Peneiro, assim chamada, porque o povo, inconsciente e rude, amotinando-se, entrou na cidade tumultuariamente e destruiu, esfrangalhou e queimou uns aparelhos de preparação de farinhas para a sua conversão em pão, que a Câmara tinha montado no intuito de tirar aos açambarcadores os lucros exorbitantes que estavam percebendo. Era uma boa medida. Mas o povo, na ira cega da sua inconsciente brutalidade, não lhe viu o alcance. E sempre assim foi e continuará a ser, esta eterna criança!...
Eis o que se lê no decreto de 25 de Setembro de 1856: «Tendo consideração ao que me representou a Câmara Municipal de Bragança acerca da autorização que pretende, para contrair um empréstimo até à quantia de 5.000$000 réis, a fim de ser exclusivamente empregado na compra de cereais com que ela possa habilitar-se durante a crise de subsistências, para abastecer dos géneros que faltarem os mercados do concelho, prestando aos lavradores as sementes que lhes forem necessárias para as próximas lavouras de suas terras... atendendo a que, em vista das circunstâncias gerais do país e daquelas em que especialmente se acha o distrito de Bragança, com respeito à esterilidade e carestia dos géneros alimentícios, não pode deixar de resolver-se prontamente a representação da mesma Câmara, etc., concedo autorização para se contrair a empréstimo».
Ainda, referindo-se a esta época, lemos: «Decorreu o ano de 1856 assaz funesto e de triste recordação para este reino, sendo acompanhado por uma colheita escassa, aniquilada pelas excessivas chuvas e intempéries do ano antecedente».
À frente da Barulheira do Peneiro, se não ostensivamente pelo menos implicitamente, pôs-se o bacharel Albino Augusto Garcia de Lima, o que lhe deu grande aura popular, sendo nomeado administrador do concelho de Bragança por decreto de 20 de Outubro de 1857, lugar vago pela exoneração de Bernardo de Figueiredo Sarmento.
Mas o iniciador do movimento foi um tal Gostei, natural de Rio Frio de Carragosa, empregado nas obras públicas e cuja mulher era padeira.
À falta de cereais acrescia também a do vinho, geralmente caro em relação aos anos anteriores, devido em parte ao incremento da destilação e à devastação exercida pelo oïdium, moléstia da farinha na linguagem popular, que sendo observada pela primeira vez em 1845, em estufas, na Inglaterra, se alastrou rapidamente pelos vinhedos de França, Itália, Espanha e em Portugal desde 1852 por diante.
O philloxera vastatrix apareceu pela primeira vez em Bragança nos vinhedos da Candaira, termo da cidade, em 1882. Sete anos depois tinha destruído por completo todas as vinhas do distrito, com excepção de algumas poucas em terrenos graníticos. A nossa povoação de Baçal, cujo terreno é fundamente argiloso, foi das últimas em perder as suas plantações, onde duraram por mais três anos que nas povoações limítrofes.
Também neste tempo, como sempre, ao flagelo da fome veio juntar-se a peste. O cholera-morbus, que desde 1853 assolava a Espanha, atacou Portugal em 1855 nos distritos de Vila Real, Bragança, Viseu, Porto e Aveiro, e muito principalmente nas povoações marginais do rio Douro. No nosso distrito assinalou-se tristemente na povoação de Carção pelo grande número de vítimas que aí fez. Nesta povoação, a epidemia começou em Novembro de 1855, e havia dias que morriam duas, três e quatro pessoas e enquanto grassou deram-se, ao todo, cento e catorze óbitos. Foi notável o zelo que então desenvolveu o reitor da freguesia, Luís Dias Poças Falcão, não saindo da cabeceira dos enfermos onde a sua caridade evangélica o levava a distribuir largamente os socorros espirituais e temporais. Este benemérito merece, pelo seu distinto proceder em tal calamidade, que aqui lhe façamos comemoração especial.
Nasceu na mesma freguesia de Carção a 23 de Novembro de 1822 e nela veio a morrer a 7 de Novembro de 1901, tendo-a servido como pároco colado desde 1849, apenas dois anos depois de haver ascendido à ordem de presbítero.
Para de algum modo recompensar tanta dedicação, por carta régia de 11 de Dezembro de 1871 foi-lhe concedido o título de cónego honorário da Sé de Bragança.
Por diploma de 15 de Outubro de 1868, o presbítero António Pereira Pinto de Magalhães, reitor da freguesia de Santo Amaro, dos Pereiros, no arcebispado de Braga, hoje bispado de Bragança, concelho de Carrazeda de Ansiães, em atenção aos seus merecimentos e aos serviços feitos à igreja e ao Estado, bem como pelos actos de caridade de que deu manifestas provas por ocasião das epidemias que flagelaram a sua freguesia, foi nomeado comendador da Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa.
Em princípios de Janeiro de 1866 manifestou-se o cólera em Freixo de Espada à Cinta e o médico do Partido Municipal fugiu. Tal cobardia foi nobremente resgatada pelo seu colega do concelho do Mogadouro, Manuel Azevedo de Miranda, que correu pressuroso em socorro dos infelizes atacados. Este seu generoso proceder valeu-lhe a portaria de louvor de 3 de Janeiro de 1866, bem como outra idêntica à Câmara Municipal por espontaneamente se prestar a dar-lhe uma gratificação. Por decreto de 27 de Fevereiro de 1867 foi, em atenção a esses serviços, o dito médico Miranda nomeado cavaleiro da Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa; por outro idêntico, inserto no mesmo Diário, em atenção aos bons serviços prestados não só durante a epidemia do cólera-morbus em 1856, mas também em 1865 por ocasião de se manifestar a febre tifóide nos lugares de Carção e Argozelo, foi Zeferino José Pinto, delegado de saúde no distrito de Bragança, nomeado comendador da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo.


Memórias Arqueológico-Históricas
do Distrito de Bragança

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