sábado, 19 de dezembro de 2020

Bragança: terra fria cheia de tons quentes e sabores genuínos

Ergueu-se como cidade-fortaleza do reino na Idade Média, mas a riqueza de Bragança vai além das muralhas. População e natureza andam de mão dada numa relação que começa na terra e acaba na mesa.
(Fotografias: Rui Manuel Ferreira/GI)
«A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão», afirmou Miguel Torga em 1941 no congresso em que batizou Trás-os-Montes de «Reino Maravilhoso». O escritor, cuja obra viria a espelhar aquelas paisagens, referia-se então à Terra Fria, território que abrange Mogadouro, Miranda do Douro, Vimioso, Vinhais e Bragança. No ponto extremo do Nordeste de Portugal, entre montanhas austeras e vales de terra bravia, fica a cidade que desde os primórdios da sua existência faz das tripas coração.

Bragança, cenário de numerosos conflitos fronteiriços entre Portugal e Espanha ao longo dos séculos, palco de caos durante as invasões francesas, sempre arregaçou as mangas para sobreviver face ao solo agreste e ao clima hostil. Não admira, pois, que tire partido de uma das zonas com maior diversidade de fauna e flora do país – o Parque Natural de Montesinho, ex-líbris transmontano que integra os concelhos de Bragança e Vinhais numa área de 74 mil hectares. Aqui fica a aldeia de Oleiros, onde os castanheiros se alinham planalto fora. «O castanheiro é importante para a biodiversidade, mas também para a economia da região», explica António Sá, guia e fotojornalista, que em 2010 trocou Espinho por Lagomar, uma aldeia ao redor da serra.

Muralhas da Cidadela
Por esta altura, os ouriços das castanhas decoram a terra e as árvores centenárias recuperam de mais um inverno, mas é impossível não imaginar o brilho dourado dos bosques no outono. «Há famílias inteiras que vêm aqui para a apanha da castanha na primeira quinzena de novembro», conta António. Aqui, é grande a abundância desta espécie autóctone, Bragança detém 80 por cento da produção nacional de castanha. A presença de castanheiros significa, normalmente, a presença de javalis, que ali procuram refúgio e alimento. Por sua vez, estes garantem a existência de lobos, o que, continua o guia, «contribui para boa saúde da cadeia alimentar». Pelas curvas e contracurvas que ladeiam o rio Sabor até à aldeia de Cova da Lua, os carvalhos e as azinheiras dominam a paisagem e servem outros mamíferos selvagens como o corço e o veado, que muitas vezes descem aos lameiros para beber água. Na humidade destes terrenos, pastam animais como a ovelha churra galega bragançana ou a vaca mirandesa e, com a proximidade dos cursos de água, é possível avistar lontras ou toupeiras-de-água.

Um passeio pelo Rio Fervença
A 1000 metros de altitude, em pleno parque, encontra-se a aldeia que partilha do seu nome e charme. Montesinho é feita de ruas estreitas e casas típicas que obedecem à arquitetura simples transmontana. Aproveitando recursos naturais como o xisto e o granito e a madeira de castanheiro ou carvalho, a casa tradicional transmontana é constituída por um nível inferior, espaço que antigamente abrigava o gado, e pela habitação no nível superior, quase sempre com um alpendre a enquadrar a entrada. Esta é uma aldeia carismática em qualquer estação do ano. Por agora, a neve ainda tinge de branco os telhados e as árvores, mas a primavera já chegou e as caminhadas, piqueniques e passeios de BTT tornam-se mais apetecíveis.

Pedra, madeira e neve: a moldura da aldeia de Montesinho,
 dentro do parque que lhe dá nome
Embora esteja numa das zonas de maior biodiversidade da Península Ibérica, é na resistência das suas gentes que Bragança encontra prosperidade. A economia regional move-se pela criação de gado (vaca, porco bísaro utilizado para fumeiro, ovelha e cabra), pelo cultivo da castanha, da batata e de cereais como o trigo e centeio e pelas madeiras dos seus bosques.

A relação simbiótica entre populações e natureza já vem dos dias em que o Castelo de Bragança e a sua cidadela eram o centro da vida dos brigantinos. Pensado para funcionar como um centro regional da zona mais periférica do reino por D. Sancho I no século XII, o edifício medieval viria a tornar-se símbolo de poder militar na fronteira. De olhos postos no castelo, salta à vista a Torre da Princesa, ornamentada com várias janelas góticas. Ao lado, fica o pelourinho que é, segundo a especialista Emília Nogueira, o mais antigo vestígio da vila. Datado do século XIII, inclui a figura de um berrão, da Idade do Ferro, «uma das muitas esculturas ilustrativas de rebanho feitas na época no Norte da Península».

Um passeio pela aldeia de Montesinho
Em frente ao castelo, a Igreja de Santa Maria é paragem obrigatória para observar as linhas torcidas e a talha dourada do barroco em contraste com o teto de madeira. A um passo da igreja está a Domus Municipalis, uma estrutura medieval de estilo românico que servia simultaneamente como espaço de reunião e como cisterna de água, tendo sido depois utilizada como Paços do Concelho. Antes de se rumar ao centro, passeie-se pela cidadela, onde as encantadoras ruas de granito, as vielas apertadas e as casas baixinhas roubam o protagonismo ao castelo sem grande esforço.

Antigo e moderno
Descendo, chega-se à cidade moderna. Na Rua Engenheiro José Beça, o Solar de Santa Maria, hoje utilizado para turismo de habitação, é um exemplo vivo das casas senhoriais do século XVII. Mais à frente, naquela que já é conhecida como a «rua dos museus», a Rua Abílio Beça, situa-se o Museu do Abade de Baçal, detentor do maior acervo cultural e artístico da região, com obras que abrangem arqueologia, epigrafia, arte sacra, pintura, ourivesaria, numismática, mobiliário e etnografia. A alguns metros dali fica a igreja de São Vicente, uma das mais emblemáticas da cidade, pois diz-se que terá sido palco da boda secreta de D. Pedro e D. Inês de Castro.

Bragança é também casa do Centro de Fotografia
 Georges Dussaud
O tradicional e o contemporâneo encontram-se ao virar da esquina, no Centro de Fotografia Georges Dussaud. O edifício neoclássico construído para receber a família real no início do século XX – propósito que o regicídio deitou por terra –, guarda uma coleção de 148 fotografias a preto e branco do fotógrafo que se apaixonou por Trás-os-Montes. Ao fundo da rua, o visitante é convidado a conhecer um dos mais icónicos nomes da arte do século XX, no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, dedicado à obra da pintora transmontana. Atualmente, tem em exposição Cabo Verde – O espírito do lugar, que reúne o conjunto de obras ilustrativas da sua residência artística naquele país entre 1988 e 1989, e que estará patente até 17 de junho. O museu reserva, ainda, lugar à obra de artistas convidados, como é o caso da exposição Knife and Wound, de Filipe Marques.

Vista para o interior da Igreja de
 Santa Maria do Sardão, na Rua da Cidadela
Em Bragança, as raízes eternizam-se na tela, mas são sempre o prato do dia. Entrar no Solar Bragançano é como entrar na casa de uma família transmontana onde a comida conforta o estômago e a hospitalidade aquece a alma. A sala de entrada anuncia a decoração acolhedora que carateriza o restaurante e sobre as mesas amontoam-se livros e jogos de tabuleiro para enfrentar eventuais esperas. Os proprietários, Desidério Rodrigues e Ana Maria Baptista circulam entre a cozinha – onde se confeciona a comida em pote de ferro – e as salas de refeições, com a cortesia com que brindam os clientes há vinte anos. Na carta, destacam-se pratos como o javali à campesino estufado e a posta de vitela à mirandesa. O pudim abade de Baçal (semelhante ao abade de Priscos, mas com presunto em vez de toucinho) e o cremoso bolo de chocolate são algumas das apetitosas sobremesas.

O cozido à portuguesa do restaurante O Poças,
 junto à Praça da Sé
Ainda junto à Praça da Sé podemos encontrar o Poças, uma referência local da cozinha regional. É composto por três salas e alia a arquitetura do século XX ao ambiente familiar quase de taberna. Serve clássicos como o cozido à portuguesa com os bons enchidos da região. Enchidos esses que são transversais a toda a carta. Produtos como a castanha, o cogumelo e carnes como o porco e o javali são também imagem da casa.

Javali à mesa
Vindo das serras onde esgravata por invertebrados e se esconde entre as árvores, o javali é presença assídua na ementa de qualquer restaurante típico. É assim também na Taberna do Javali, mesmo ao lado do castelo, onde há risoto de javali, sandes de javali e, até, francesinha de javali. Aqui, a castanha é a estrela das sobremesas, podendo vir em pudim ou em tarte.

Na renovada Pousada de São Bartolomeu,
dorme-se com o castelo à vista
A tradição não impede a inovação. O Porta, restaurante onde tudo tem mão do chef André Silva (que antes liderou o estrela Michelin Casa da Calçada, em Amarante), tem uma decoração sóbria com pequenas esculturas de caretos que dão a volta à sala. Além de reinventar ingredientes como a alheira e a castanha numa trufa que é servida de entrada na língua de um careto, também oferece o tradicional javali envolto em pão torrado com torresmos, molho de vinho tinto, creme de maçã e castanha. Se é verdade que aqui a cozinha de autor se faz sem medo, é a magnífica vista panorâmica sobre o castelo que tira o fôlego.

No restaurante Porta, do chef André Silva,
 a tradição não impede a inovação.
As duas complementam-se
Ao cair da noite, depois de encher os olhos de paisagem e a barriga de comida, nada melhor do que descansar na Pousada de São Bartolomeu. Em terra de reis e rainhas, não podiam faltar as camas de princesa das suas 28 luxuosas suítes. Na sala do pequeno-almoço, a natureza é novamente protagonista, com uma árvore que «brota» da parede envidraçada. O olhar, esse, vai sempre ter ao castelo, o ponto de partida e de chegada de uma cidade com as unhas sujas de terra, o peito inchado de orgulho e os braços abertos prontos a receber quem a queira descobrir.

Texto: Maria João Monteiro

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