terça-feira, 22 de maio de 2018

Nós, Transmontanos, Sefarditas e Marranos - ANDRÉ NUNES (N. TORRE DE MONCORVO C. 1518)

Igreja da Misericórdia
Procuramos, com este texto, celebrar os 500 anos do nascimento do primeiro advogado de Torre de Moncorvo de que temos notícia – Dr. André Nunes, que concluiu o curso de direito civil na universidade de Salamanca em 8.5.1539. (1) Procuramos fazê-lo ressurgir da tumba do esquecimento e trazê-lo para a galeria dos mais ilustres Moncorvenses.   

Por 40 anos, o Dr. André Nunes foi homem liderante da comunidade cristã-nova de Moncorvo. Cerca de 1550, ao início da sua carreira, encontramo-lo a disputar com o poderoso e cristão-velho Luís de Azevedo, as eleições para o cargo de provedor da misericórdia. (2) Mais tarde, em 1580, seria ele a congregar gentes da Torre de Moncorvo no apoio ao Prior do Crato, como rei de Portugal. Por isso foi mandado prender pelo corregedor da comarca, Diogo Dias Magro, para acalmar os levantamentos. (3) De resto ele era o advogado da Casa Sampaio e mantinha estreitas relações com as principais famílias da comarca. A sua morada era no castelo e isso é bem significativo da sua posição na sociedade Moncorvense. (4)

Nascido por 1618 em Torre de Moncorvo, foram seus pais um António Nunes, de Mogadouro e uma Branca Lopes, de Moncorvo. Trata-se de duas famílias, com largo historial na inquisição.

André Nunes casou em Vila Flor, com Leonor da Mesquita, que lhe deu 6 filhas. A mais velha chamou-se Isabel da Mesquita. Casou com seu primo direito, o médico Gaspar Nunes. (5) O casamento realizou-se por 1574, altura em que André Nunes tinha morada estabelecida no Felgar. Como eram primos e necessitavam de dispensa para casar, foi o próprio Gaspar buscá-la a Roma. Logo depois do casamento, Isabel e Gaspar embarcaram para o Perú.

Branca Nunes, a segunda filha, casou com outro médico, nascido em Bragança, morador em Vila Flor, Luís Álvares da Silva. Viveram algum tempo em Vila Flor, passando a Viana do Castelo, pelo ano de 1580.

Com o Dr. Francisco Rodrigues da Silva, advogado, irmão do anterior, casou Ângela Nunes, a terceira filha do casal. Ficaram morando em Torre de Moncorvo, trabalhando ele com o sogro. (6) As 3 filhas mais novas (Susana, Ana e Inês) mantinham-se solteiras.

Em Vila Flor tinha o Dr. André Nunes uma tia materna chamada Isabel Lopes, (7) casada com Vasco Fernandes, que era tabelião. De entre a numerosa prole, o casal teve uma filha chamada Violante Álvares. E Vasco Fernandes empenhou-se em arranjar para ela um noivo cristão-velho da nobreza da terra: Gaspar da Rosa, cavaleiro-fidalgo. Em dote de casamento, Vasco Fernandes fez-lhe escritura da própria casa, que tomaria à sua morte, e da propriedade do ofício de tabelião, que logo passou a exercer. O casamento realizou-se por 1571 e pouco depois faleceu Vasco Fernandes.

O maior opositor a este casamento seria o primo de Violante, o advogado André Nunes, que, naturalmente, ganharia em Gaspar Rosa um inimigo de estimação. E mais ainda, em um estranho personagem que entretanto chegou à “terra Flor” de D. Dinis: o inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa, nomeado abade da matriz de S. Bartolomeu. Imagine-se: Gaspar da Rosa deixou a própria casa, para a oferecer de morada ao novo abade-inquisidor! (8)

No dia 30.9.1577, em casa do inquisidor, com o padre João Álvares, a servir de escrivão, foi formalmente registado o testemunho de Gaspar da Rosa contando que o Dr. André Nunes se opôs ao casamento “da menina” com um cristão-velho e como ele era considerado por saber muitas coisas da lei de Moisés e o diziam “bem-aventurado”.

Um mês depois, Gaspar da Rosa e Violante Álvares entravam na inquisição de Coimbra, onde foram chamados e Violante contou para os inquisidores o que se tinha passado, dizendo, nomeadamente:

- Haverá 7 anos, tratando-se do seu casamento com Gaspar da Rosa, tabelião, foi ter a sua casa o licenciado André Nunes, sobrinho da mãe dela testemunha, o qual disse à dita sua mãe e irmã Maria Álvares e a seu marido Gaspar Vaz, estando todos juntos em uma câmara “que pena era casar ela testemunha com um cristão-velho que não defendia a sua lei e a sua regra” (…) e a dita sua mãe e irmã o gabavam que sabia muito e era bem-aventurado. (9)

Obviamente que na inquisição de Coimbra logo se abriu um processo contra o Dr. André Nunes, que ficou aguardando outras culpas.

Passaram 5 anos e o abade foi mandado assumir o papel de inquisidor, com poder delegado pelo tribunal de Coimbra para “visitar” terras do Minho e Trás-os-Montes, oficialmente investigando crimes contra a fé cristã. E em Março de 1583, depois de Guimarães, Vila Real e outras terras a “visitação” chegou a Moncorvo onde, nos dias 20-24 daquele mês, na “casa da inquisição”, (10) foram ouvidas as pessoas que se apresentaram a denunciar.

Maria Martins, solteira, “que se agasalha por onde pode” foi uma das denunciantes, declarando o seguinte:

-Haverá 2 anos que veio para esta vila e morou um ano em casa de André Nunes (…) e em todo esse tempo, viu ela denunciante que nem eles nem as filhas, que então eram crianças, não comiam carne de porco, nem toucinho, nem a cozia em panela que se havia de fazer cozinha para eles, mas antes a mandavam cozer em outra panela estremada para os criados e gente que traziam a trabalhar (…) por algumas vezes lhe dava sua ama coelhos para os moços, mas que não é recordada vê-los comer aos ditos seus amos… (11)

Outro testemunho implicando como judaizantes o Dr. Nunes e a família foi prestado por outra criada que serviu em sua casa apenas um mês. Disse que aos sábados eles se vestiam com roupas lavadas e não trabalhavam e que também nunca foram cozer pão ao forno em dia de sábado.

No seguimento destas e outras denúncias feitas no decurso da visitação de Jerónimo de Sousa, foram logo instaurados uns 38 processos e presas umas 17 pessoas de Moncorvo, acusadas de judaísmo. Entre elas contou-se André Nunes, 2 irmãos, 5 filhas e 2 genros. Escaparam a filha mais velha e o genro, que estavam no Perú, bem como a sua cunhada Inês Fernandes “que não se achou”. A mulher, já falecida, foi também processada, acabando os seus ossos por ser desenterrados e queimados na fogueira de um auto da fé, 4 anos mais tarde. (12)

Encarcerado em Coimbra, e como geralmente acontecia, o Dr. André Nunes viu acrescentar as culpas, especialmente pelas suas filhas que contaram como em casa faziam jejuns judaicos e guardavam os sábados começando na sexta-feira à tarde com a limpeza e o acender das candeias com torcidas novas e azeite limpo. A mais grave, porém, das acusações relacionava-se com a posse de uma bíblia. Veja-se, por exemplo, o testemunho de sua filha Ângela Nunes:

- Disse que o seu pai tinha uma bíblia que era um livro grande encadernado de tábuas, e não tinha conto por cima, pelo qual lia algumas vezes algumas histórias da lei velha a ela confitente e a sua irmã Branca Nunes e que às outras mais novas não atentou nisso. E que este livro tinha seu pai em casa escondido ora por detrás dos livros, ora entre a roupa e outras vezes o levava consigo debaixo da capa a casa de Inês Fernandes, viúva de Torre de Moncorvo, sua cunhada, mulher que foi de Francisco Nunes, irmão de seu pai, por as suas casas serem pequenas e não terem onde esconder.

Em sua defesa e de toda a família, foi elaborado por André Nunes e pelo genro Francisco Silva um documento com o título: “Petição dos cristãos-novos de Torre de Moncorvo”. (13) Trata-se de uma exposição arrasadora dos métodos usados na visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa e um fantástico quadro das lutas sociais e políticas envolvendo a comunidade hebreia e os homens da nobreza e da governança da Torre de Moncorvo naquela época. Não será este o espaço para fazer a análise do documento e terminamos dizendo que, depois de penitenciado e libertado o Dr. André Nunes, nenhuma notícia mais temos sobre ele nem sobre nenhum dos seus familiares diretos. Dir-se-á que ele e a sua a família desapareceram definitivamente.

Notas:
1-A.U.S. Cursos, lv. 555, f. 23v.
2-ANTT, inq. Lisboa, pº 12301, de Luís Vaz.
3-IDEM, pº 8450, de Francisco Rodrigues da Silva.
4-ANTT, inq. Coimbra, pº 276, de Branca Nunes.
5-Gaspar Nunes era filho de uma irmã de André Nunes. Também ele se formou na universidade de Salamanca. Antes de 1568, foi prisioneiro da inquisição de Valhadolid, segundo informação de seu primo Duarte Nunes. – ANTT, inq. Coimbra, pº 68.
6-ANDRADE e GUIMARÃES, Nós Trasmontanos… in: jornal Nordeste nº 1121, de 8.5.2018.
7-IDEM, jornal Nordeste nº 1075, de 20.6.2017.
8-ANDRADE e GUIMARÃES, Jerónimo de Sousa, inquisidor de Évora e abade em Vila Flor, in: jornal Terra Quente de 1.6.2009 e seguintes.
9-ANTT, inq. Coimbra, pº 266, de André Nunes.
10-É conhecida como “casa da inquisição” por nela se fazerem geralmente as “audiências” relacionadas com diligências inquisitoriais. Na verdade deveria chamar-se “casa dos Jesuítas” pois tem insculpidas no alçado principal as armas daquela instituição e nelas terá funcionado uma “aula” de português, latim e filosofia. Em tempos do Estado Novo serviu de sede do núcleo local da Legião Portuguesa.
11-ANTT, inq. Coimbra, livro 662, f. 64.
12-IDEM, pº3710, de Leonor da Mesquita.
13-MEA, Elvira Cunha de Azevedo – O procedimento inquisitorial garante da depuração das visitas pastorais de Braga (Século XVI), in: Actas do Congresso Internacional do IX Centenário da Dedicação da Sé de Braga, Volume II/2, pg. 67-95.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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